Vida de cão

Há quem diga que os cães veem coisas que não vemos; justamente aquelas coisas de ordem metafísica que se prestam a justificar o fato arrebatador de que “Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”. Certo está que das paisagens o colorido eles não podem discernir tanto quanto nós. Afinal, nos olhos eles têm um par de pigmentos; e nós uma trindade completa. Nada mais coerente, já que para dominar o mundo físico, indispensável que sejam três, posto que é ele o primeiro número existente na geometria, logo, é o que dá a primeira forma à matéria.

Contudo, para além do aspecto meramente biológico, é certo que eles têm uma espécie de “anima” indissociável ao corpo, enquanto nós somos tricotômicos e separáveis, com partes divisíveis pela espada de dois gumes do Logos. Ou seja, nós temos um espírito ironicamente obcecado com aquele “Espírito que enche a solidão”, como escreveu Quental; o que equivale a dizer que os cães não perdem sono com o trabalho de cogitar a existência e que tratados de Filosofia e partituras de Bach para eles não passam de embrulho para bacalhau mal salgado. Enquanto os cães preguiçosamente se coçam estendidos ao sol nos dias de inverno, vestidos de moletom nós suamos para poder comprar a carne da qual lhes advêm aqueles imensos ossos recheados de tutano; e suamos para entender o porquê de também “tirarmos água” das sinapses.

Não conhecem os cães o quê seja pecado. Não atribuem valor e moralidade aos seus instintos e sentidos. Porém, nós não apenas o conhecemos. Nós praticamos o pecado e o compartilhamos diariamente, pondo em conflito carne e espírito. Daí, raramente enxergamos o “sobrenatural” em sua esplêndida e integral nudez. Sobrenatural que, não paradoxalmente, é naturalíssimo, uma vez que se constitui em realidade tão presente quanto o rugir do imposto de renda em abril. As coisas visíveis e invisíveis são uma única realidade, mas para Günther, o morto pastor alemão de minha falecida bisavó, o santo arcanjo Miguel pelejando contra o próprio Satanás nos céus valeria tanto quanto sua matinal mijada no poste. Brutal indiferença! Para ele, o mais próximo do que seja o transcendental talvez fosse a leitoa à pururuca em cima da larga mesa da fazenda. Sobrepujar essa distância era seu particular nirvana; devorar a tenra carne, seu bodhi. Porém, teria que se conformar, à imagem da metáfora proposta pela mulher cananéia nos Evangelhos, com as “migalhas que caem da mesa dos seus senhores.” (Mateus 15:27)

O certo é que eles se deparam com coisas inefáveis sem entendê-las. O céu e a terra passam e os nossos melhores amigos não cessam de babar. Por outro lado, se não nos damos conta do invisível em suas andanças, tal deve-se por dois motivos: o pecado já referido e a comum neutralidade que carrega todo homem natural, sobretudo à partir da idade da razão, como uma espécie de véu dotado da capacidade de não expor o indefeso sapiens-sapiens à uma realidade que o coagiria tanto à salvação quanto à danação eterna. Apenas a santificação permitiria ao homem ver Deus pelas costas. Entender e praticar a graça da lei da ascética é o colírio que nos revela o profundo e o escondido no raso e no evidente. Eis o limiar entre o cachorrinho pelo qual você passou hoje e qualquer pessoa.

Há meia dúzia de milênios utilizamos a expressão “vida de cão.” Antes, quando a lógica da fé racional nos regia, possuía significado eminentemente pejorativo, pois tinha-se por evidente que este animal -- nosso amigo -- se prestava à mais ordinária das existências, em tudo dependendo do homem, seu “egoísta” domesticador. Reminiscências desta acepção atualmente subsistem nos histéricos xingamentos da mulher traída que não tosqueneja em gritar “cachorro!” Entretanto, “vida de cão” é hoje sinônimo de conforto idílico, da sombra do teto da casinha almofadada e da fresca água mineral na tigela. A Modernidade, ciosa do espírito, inverteu tudo: humanizou o poodle e animalizou o homem, não mais dono-proprietário, mas guardião e faz-tudo do distinto totó; fez do neto de Adão um raivoso hidrófobo e da neta da Laika uma depressiva blasé.

Autor

Dayher Giménez
Advogado e Professor