Um copo d’água e mais...

                                                                    Drika Vieira e Carlinhos Rodrigues*

“A arte diz o indizível; exprime o inexprimível, traduz o intraduzível.”

LEONARDO DA VINCI

Artista italiano. Uma das figuras mais importantes do Alto Renascimento, que se destacou como cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico, poeta e músico. (1452 – 1519)

 

Ele se aproximou de nós após a apresentação da peça Um Outro Lugar e trazia consigo um copo d’água. Dirigiu-se até o palco e nos ofereceu. Não foi simples, porém na espontaneidade do gesto havia um complexo gigante causado pelo impacto do espetáculo em seu coração: o pequeno Guilherme, de 4 anos na época (isso aconteceu em 2019), assistiu a peça ao lado da mãe Paula, no Sesc Taubaté, e ficou impactado com o personagem que quase morre de sede em cena. Mesmo após ter provocado muito mal na história a outro personagem, Guilherme se compadeceu da busca por água e pela sobrevivência, não pesando para ele o caráter do indivíduo. O espetáculo despertou na criança a empatia, provocou uma ação que transcendia o julgamento moral, porque antes de tudo era preciso salvar a vida, evitar a morte. A Arte realizando seus milagres que o mundo nem sempre entende. Um copo que não oferecia somente água, mas compaixão, piedade, solidariedade e vida!

E mais... Certa vez, no Sesc Santos, apresentamos Nina e Carambola, que fala sobre perdas e uma menina, muito pequena, talvez uns três anos, se aproximou e perguntou se a Ratinha Nina, personagem da peça, queria morar com ela. Estava disposta a levá-la para casa porque Nina perdia os pais na história e ficava sozinha, enfrentando os problemas do mundo, principalmente o Carambola, o faminto gato cinza que circulava pelo beco onde ela morava. Imagine o que se passou no coraçãozinho dessa criança? O que despertou, sem dúvidas, foi essa generosidade e empatia que é inerente ao ser humano e que poderosos interesses pessoais e egoísmo vão abafando ao longo da vida.

A mesma peça, numa outra apresentação e cidade, gerou uma emoção muito grande porque um pai nos procurou no camarim, após a sessão daquela tarde. Ele trazia uma menininha no colo. Apenas os dois. Foi quando ele nos relatou que sempre quis falar com a filha sobre perda, morte, separação, mas não sabia como. Após assistir Nina e Carambola descobriu uma maneira e nos agradeceu por isso. Evidentemente que ele se referia a esposa, mãe da criança.

São experiências artísticas que desencadeiam potências inimagináveis e intraduzíveis no indivíduo. Somente uma vivência cultural mais constante poderá provocar esse desencadeamento de trocas e crescimento no espectador. Independentemente de idade.

Sim, pois foi uma moça, já adulta, que nos enviou uma mensagem, horas depois de assistir o espetáculo La vi en Rose, no Sesc Piracicaba. O objetivo da mensagem era saber qual o destino do ursinho de pelúcia Petit, que por acidente, caía dentro de um poço e se tornara uma perda dilacerante para a personagem Rose. Então, ela pediu para que enviássemos uma foto do ursinho para ter certeza de que estava tudo bem com ele. Não foi trolagem ou uma brincadeira. Ela nos revelou que na infância havia perdido uma pelúcia muito cara ao seu coração e nunca mais teve outra igual.

Quantas histórias de coisas perdidas, sentimentos mal trabalhados, situações mal resolvidas e o palco e transforma num grande pote de luz! A arte se expande e se projeta nas mentes e corações humanos dizendo o indizível; exprimindo o inexprimível, traduzindo o intraduzível como definiu magistralmente Leonardo Da Vinci.

Dá para escrever um livro! Todas essas peças citadas e também Candim, Vincent – por um toque de amarelo, Pela estrada afora... ou ainda A lua e o poeta e várias outras peças da Cia da Casa Amarela provocam esse processo de mergulho interior.

Há quem questione essas consequências na alma infantil, porém tudo é muito bem pensado, discutido e avaliado antes de ir para o palco, mesmo porque as reações das crianças, que muitas vezes saem chorando de nossas apresentações, são extremamente positivas. São vivências que elevam, transformam e projetam o melhor em cada pessoa.

Como ainda estamos na semana dos 29 anos da Cia da Casa Amarela, reforçamos aqui a importância de criar e produzir Arte e Cultura para que os homens se tornem melhores porque é assim podemos tentar explicar ou entender nós mesmos, o mundo que nos cerca e como interagir com esse universo ao redor.

*Atores profissionais, dramaturgos, diretores, produtores de teatro e áudio visual, criadores da Cia da Casa Amarela, uma das mais premiadas e reconhecidas cias teatrais do estado de São Paulo, com mais de 100 prêmios, incluindo três premiações da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte). Com 29 anos de história, a Cia da Casa Amarela apresenta-se em diversas regiões do Brasil e já representou nosso país em festivais internacionais em Portugal.

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Autor

Drika Vieira e Carlinhos Rodrigues
Atores profissionais, dramaturgos, diretores, produtores de teatro e audiovisual, criadores da Cia da Casa Amarela e articulistas de O Regional.