Tempos modernos e antigas vocações

Os tempos mudam e com estes mudam os ofícios, as profissões, os trabalhos que põem pão sobre a mesa. Ocorre, porém, que o homem muda mais vagarosamente que a sociedade da qual participa. A sociedade transforma suas estruturas do dia para a noite, mas o indivíduo não sofre mutações tão céleres. Somos muitíssimo mais vagarosos. Nosso timing é ancestral e telúrico: acumula na genética e na psicogenética gerações de homens e de seres que da terra vieram e à terra voltaram -- lentamente. Esta situação cria assincronias existenciais: homens e mulheres com “almas antigas.”

Nestes termos, é possível falar que muitas pessoas que reputamos por vagabundas, imprestáveis, confusas ou desencontradas na verdade apenas estão com os braços cruzados porque, ao analisar o menu dos labores modernos, não têm à sua disposição aqueles que lhes proporcionariam o alvo maior do estilo de vida moderno: “vencer na vida.”

Quantos hippies chamados de bandoleiros não seriam românticos trovadores andantes, compositores de poemas célebres dignos das gestas mais nobres e épicas? Quantos andarilhos tidos por vadios não seriam exploradores corajosos, conquistadores de terras além-mar? Quantos pichadores marginalizados não seriam exímios calígrafos, iluminadores de manuscritos os mais belos e sacros? Quantos infratores, criminosos, contraventores, e tantos tendentes à violência, não seriam cavaleiros de armadura, escudo, lança e espada combatendo cruzadas e guerras medievais? Quantos ociosos não seriam frades e madres enclausurados, beatíficos e orantes, cuja razão última seria a percepção contemplativa da realidade? Tantos paralelos podem ser traçados...

Se o mundo estivesse melhor ajustado às coordenadas do passado que ainda nos afetam no presente e afetarão no futuro, provavelmente eu mesmo seria centurião, marinheiro ou condestável. Você, que assiste aqueles vídeos virais de chineses moldando potes de barro, talvez fosse um ceramista. Seu pai que ama festa do peão, domador de cavalos. Sua mãe religiosa e talentosa com pincéis, pintora de ícones. Seu irmão, hábil com madeira, carpinteiro. Sua irmã leitora compulsiva de astrologia, pitonisa. Seu tio com idéias esotéricas, sacerdote. Seu vizinho fofoqueiro, de excelente audição, radar humano.

O fato é que os tempos modernos não comportam a multiplicidade de personalidades e tipos humanos que outrora vingaram no planeta. Somos, sem dúvida alguma, um sistema compactador de individualidades: uma máquina de padronizar indivíduos, amputando-lhes os caracteres mais especialíssimos. O rei deste mundo é Procusto, que não tolera diferenças e divergências.

Na Coréia do Norte, o ditador obeso de um país de famélicos compulsórios obriga por decreto os cidadãos a cortarem o cabelo, a usarem roupas e a consumirem cultura segundo seu gosto. E claro: todas as profissões estão previamente tabeladas segundo as necessidades ideológicas do partido. No Ocidente, a indústria cultural, o stablishment sócio-político e econômico-militar que domina a mídia, faz rigidamente o mesmo, só que coagindo através do livre-arbítrio. A padronização que impede autenticidades profundas e vocações antigas pode advir tanto de uma Kalashnikov apontada para a nuca quanto de uma cultura de massas atingindo diretamente os neurônios...

Autor

Dayher Giménez
Advogado e Professor