Sobrenome & Esnobismo
A carteirada é uma das mais típicas atitudes do patrimônio imaterial nacional que é o “Jeitinho Brasileiro”. Dar uma carteirada é simplesmente intimidar alguém (que se apresenta como obstáculo à concretização de alguma vontade do indivíduo que dá a carteirada) apelando para a posição socio-econômica, política, cultural, religiosa, etc. É apelar, em última instância, para prestígio, cargo e dinheiro.
Semana passada, em determinada fila (outro patrimônio nacional), um senhor aparentemente distinto, trajado como lorde desembargador do tribunal de Sua Majestade o Rei Charles III, interpelou uma atendente, mocinha, sobre a demora para o ingresso em determinado recinto. E disse, ao final, como se argumentasse: “Diga que é o Dr. Fulano de Tal Schneider”. O cavalheiro pronunciou seu sobrenome de maneira bem mais lenta e altissonante, quase que soletrando. Ficou patente a intenção de se mostrar estrangeiro na origem; mas, apesar do esforço, notava-se claramente naquele sotaque alemão muito forçado a dicção de Amácio Mazzaropi. Diagnóstico: tão caipira quanto qualquer um de nós. No máximo, um jeca tatu recém-chegado de algum campo de trigo da Prússia Ocidental.
Por fim, enquanto a atendente se afastava, o doutor repetiu três vezes: “Não se esqueça que é o Schneider, SCHNEIDER, S-C-H-N-E-I-D-E-R!”. Foi uma frase crescente na altura vocal do som e na arrogância daquela alma infeliz. No instante em que a mocinha dizia “sim, senhor”, me lembrei que, em alemão, Schneider significa simplesmente alfaiate. Alfaiate: a nobre profissão de quem produz roupas. O Dr. Schneider, apesar de afetar a pompa de um arquiduque d’Áustria do século XVII, é certamente descendente de algum honesto alfaiate medieval que no máximo pode ter bordado o brasão prateado da libré de algum funcionário de casa nobre de segunda categoria. Mas, e daí? Um alfaiate é pouca coisa? Não, não é. Um arquiduque d’Áustria é muita coisa? Não, não é. Todavia, este ínclito descendente do profissional da linha e da agulha age como se entre ambos existisse uma hierarquia moral absoluta. Alguém precisa lembrá-lo que os livros da História não registram nenhuma Dinastia Schneiderreinando em lugar algum senão na mesa de corte e costura, local tão ou às vezes muito mais glorioso que qualquer trono imperial.
Fica a impressão de que, no Brasil, quanto mais distante do português for a origem do sobrenome, quanto menos vogais e mais consoantes o apelido familiar tiver, produzindo assim uma pronúncia que precisa ser repetida e uma ortografia que precisa ser ditada, mais é importante o sujeito que o carrega. Um conhecimento básico de línguas logo mostra que, por aqui, os sobrenomes soariam de maneira muito mais popular. Tomemos a própria Língua Alemã como exemplo. Em terras tropicais, Becker seria Padeiro; Bauer, Camponês; Schmidt, Ferreiro; Braun, Moreno; Koch, Cozinheiro... E por aí vai...
Como sempre, uma frase lapidar. Desta vez, de Molière, no seu clássico “Don Juan”: “Só temos direito à glória de nossos antepassados quando procuramos ser iguais a eles. O esplendor dos feitos que nos legaram nos impõe o dever de honrá-los, de seguir seus passos e caminhos, de impedir que suas virtudes degenerem. Um fidalgo de má vida é um monstro da natureza; a virtude é o maior título de nobreza; dou menor valor ao nome do que às ações de quem assina o nome.”
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