Ser ou não ser... eis a questão!

“‘Todos os usos da palavra a todos’ parece um bom lema, sonoramente democrático. Não exatamente porque todos sejam artistas, mas porque ninguém é escravo.” 

Gianni Rodari 

Escritor e poeta italiano especializado em literatura infantil 

 

A internet, seja através das redes sociais, aplicativos ou streamings, abriu um imenso e inexplorado campo para a expressão de ideias e toda sorte de manifestações. Espaço extremamente democrático, onde todos podem dizer e fazer de tudo, ou quase tudo, dentro de um mínimo de limitações exigidas pelas leis de exposição pública, quais sejam intolerância religiosa, racial, sexual, idade etc. 

Esse mar imenso de possibilidades, ao alcance das mãos, sem necessidade de recursos técnicos ou conhecimento prévio na área, levou milhões de pessoas a se mostrarem, saírem do anonimato, a cada qualquer hora, de diversas maneiras, com suas infinitas e múltiplas possibilidades de exibição. 

 Independentemente de questões estéticas, qualidade, conteúdo, formas ou bom gosto – o que é notadamente subjetivo, crianças, jovens e adultos superam barreiras e transcendem padrões. E sentem-se, por isso mesmo, “artistas”.   

Curiosamente muitos artistas – inclusive os abundantemente expressivos e criativos num palco – não conseguem se adaptar ou produzir nesse campo digital. Muitas vezes, por puro preconceito. 

Importante, no entanto, é reconhecer a realidade legítima desse processo e do momento. 

Contudo, se há democracia na exposição de todos, com acesso a tudo e qualquer tipo de publicação, classificar tudo como Arte ou todos como artistas, é muito diferente. 

Não falamos de Cultura, pois esta é a somatória dos comportamentos, tradições e manifestações de um povo. 

O que estamos refletindo é o que move o artista, em seu imo. Isso difere de todas as expressões humanas, porquanto há um processo interior de buscas e pesquisas que extrapolam essa prática tão urgente e cotidiana. O verdadeiro artista está empenhado e focado em algo maior, mais abrangente e isso pode ser dar através de qualquer forma. 

Há uma alma que cria e se distancia do efêmero. Mesmo que seja um segundo de exposição, a obra do artista sempre terá um fio inspirador e condutor que indica seu compromisso com a Arte. 

É uma questão de essência. 

Comumente ouvimos; “agora todo mundo é artista”! Na verdade, todos têm direito à liberdade de expressar-se, mas necessariamente nem todos são artistas. 

Ainda que haja criatividade, crítica e talento envolvido nessas criações frívolas das redes sociais, o artista – por sua vez - é fruto de um processo construído a base de estudo, pesquisa, busca, um mergulho em si mesmo, muitas vezes dolorido na sua desconstrução pessoal, envolvendo uma complexidade de referências, ideias e dúvidas que inseridas em suas obras ao longo do tempo. 

Artista não é fruto do acaso. 

É necessário sim que todos possam manifestar-se, expressar ideias pessoais, boas ou não – depende do ponto de vista de cada um. Porque assim nos libertamos dos padrões. 

Contudo, é preciso saber o que é Arte, obra do artista, fruto da expressão contemporânea do dia a dia, na internet. E que haja espaço para todos, de forma que o artista tenha seu campo de atuação respeitado. 

Atualmente percebemos que grande parte do público já não sabe mais diferenciar uma coisa da outra, numa miscelânia de informações que nos chegam e, sem discernimento ou sensibilidade estética, faz com tudo seja jogado no mesmo caldeirão. 

Podem muitos articularem que muitos artistas estão ultrapassados e seus trabalhos não correspondem ao gosto do público.  

Nossa vivência na arte e cultura, há mais de três décadas, nos ensinou que o público vai absorver o que tem qualidade, em qualquer época, independentemente da forma. 

Por exemplo, numa época em que a criança praticamente nasce com o celular nas mãos, nós propomos um teatro humano, poético, de troca de olhares e sentimentos. E o público embarca na viagem. Por quê? Ora, há verdade e alma, porque sempre precisaremos da troca com o outro ser humano. E qualidade.  

Não há tecnologia que substitua o ator, vivo, inteiro, entregue e pleno num palco. Ou na música, na dança, numa sala de aula... O profissional, o educador, o artista, sempre superará qualquer carência tecnológica. Com alma. 

Enquanto isso, não fosse a instrumentalização digital, muitas pessoas não teriam como expressar seus pensamentos. 

Gianni Rodari, o grande artista das palavras e ideias, foi preciso: “‘todos os usos da palavra a todos’ parece um bom lema, sonoramente democrático. Não exatamente porque todos sejam artistas, mas porque ninguém é escravo.” 

A liberdade sempre será a grande mestra, a artistas ou não. Agora, ser artista exige uma renúncia e entrega que nem todos estão preparados ou dispostos a encarar.

Autor

Drika Vieira e Carlinhos Rodrigues
Atores profissionais, dramaturgos, diretores, produtores de teatro e audiovisual, criadores da Cia da Casa Amarela e articulistas de O Regional.