‘São as águas de março...’

“...fechando o verão

É a promessa de vida no seu coração.”

Tom Jobim

Compositor, músico, arranjador e cantor brasileiro (1927-1994)

 

Antônio Carlos Jobim em uma de suas mais icônicas composições, Águas de Março, nos exemplificou que mesmo diante das dificuldades e tristezas, é possível transformar o caos em arte. Explicando: relatou o músico que a inspiração para compor esse clássico da MPB foi uma experiência pessoal quando, realizando uma mudança de casa, colocou todos seus móveis ao ar livre e que uma chuva torrencial estragou grande parte dos seus pertences. Olhando aqueles objetos flutuando na inundação e nomeando-os, um a um, acabou compondo a canção mundialmente conhecida e gravada: “é pau, é pedra, é o fim do caminho, é o resto de um toco, é um pouco sozinho...”

Poderia ser até cômico esse quase rap do maestro Jobim se não coincidisse com os constantes incidentes trágicos dessa natureza e que recentemente aconteceu no litoral paulista e em outras regiões castigadas pelas chuvas. Ou pela seca em outros locais do país e do mundo.

Se as dores, as perdas, as catástrofes nos comovem e incomodam, provocando revolta e, ao mesmo tempo, mobilizam a sociedade para ações solidárias, o artista – além de promover eventos que arrecadem dinheiro – também usa de seu talento e sensibilidade para criar o Belo. A Arte faculta um olhar mais amplo, aprofundado e complexo das mazelas humanas, conferindo à sociedade um olhar no espelho para se enxergar e buscar soluções para tudo o que a incomoda.

Por que não instigar essa possibilidade nas crianças? Por que não inspirar jovens a romperem o conformismo? Se podemos incentivá-los a fazer, por que negar recursos e oportunidades para que tenhamos gerações mais comprometidas e criativas?

Pais, escola, sociedade, todos nós temos o dever de instigar o questionamento e o senso crítico na formação dos pequenos, e nada melhor que a Arte para extrair e desenvolver esse potencial inerente a todo ser humano, mas que muitas vezes é abafado e desencorajado ainda na infância, provocando frustrações e medos. A ignorância de muitos adultos, gerando preconceito e perseguições a artistas, geram repulsa cega de muitas pessoas à cultura. Pessoas que são influenciadas pelo conservadorismo de alguns, acabam por não vivenciarem o prazer e a alegria que a Arte faculta.

Desenvolvemos ao longo dos anos a prática de estimular em crianças e jovens a improvisação e criação artística a partir do nada. Em nossas aulas e oficinas, temos como premissa a necessidade de buscar recursos internos e externos para que esses jovens tenham voz, opinião e senso crítico diante do mundo, das dúvidas, das hesitações, dos questionamentos comportamentais etc.

É essencial que eles aprendam a ter um olhar amplo de tudo que os cercam e que, um pau, um toco, uma pedra possam ser muito mais que simples objetos e transformem-se em ideias, ritmos e Arte!

A vida não é simplesmente acordar, comer, trabalhar e dormir. Ela exige mais de nós! Mais vida, mais criatividade, mais paixão pela existência, mais troca com os outros, mais aprendizado diário e constante. Não há fim para quem quer explorar o potencial da mente, da alma, do coração...

Restringir o existir em poucas ações mecanizadas e ficar reclamando o resto da vida por um vazio onde nada satisfaz, onde sempre falta alguma coisa, jamais nos possibilitará o prazer da intensidade. Nesse quesito, as pessoas têm muito a aprender com os artistas. Não porque sejamos perfeitos, mas porque a Arte traz consigo as águas que fecham o tórrido verão, com promessa de vida no coração.

Autor

Drika Vieira e Carlinhos Rodrigues
Atores profissionais, dramaturgos, diretores, produtores de teatro e audiovisual, criadores da Cia da Casa Amarela e articulistas de O Regional.