Relações Independentes

O processo de naturalização do indivíduo corresponde ao processo de naturalização da sociedade onde este conceito nos remete a um todo em que o indivíduo faz parte. Neste sentido, a predominância de uma concepção de indivíduo e sociedade, em campos diversos e antagônicos, acabam por converter em abstratas realidades sua própria essência, dos quais se estabelecem relações concretas que não se excluem, mas carregam em si componentes que as constituem num único movimento. Todas as relações partem de um indivíduo com os outros e estão interligadas entre si.

Quando estamos num contexto de relação nos levamos por inteiro, afetando e sendo afetados por tudo e todos, e numa determinada relação ou situação, quando passamos por um momento de tensão, fica impraticável sustentar relações saudáveis se forem independentes.

Um exemplo concreto desta situação seriamos pensar que se viajamos para um lugar onde acabou de ocorrer um desastre natural não somos afetados emocionalmente por não estarmos no local no momento em que ocorreu o fato. Outro exemplo seria pensar em pais separados que não estabelecem uma relação saudável e de diálogo entre si pelos filhos, ou quando assistimos uma notícia no Jornal de uma catástrofe e não nos movimentamos para fazer algo por isto, ou quando vemos um grupo social ou religioso que considera o marido e desconsidera a esposa ou vice e versa, ou quando andamos pela rua e não olhamos quem está na chuva e com fome, não fazemos nada por isto.

Tanto nas situações sociais quanto nas relações pessoais, fica difícil não estabelecer incongruência enquanto somos parte de um organismo que tem consciente, inconsciente, corpo, história, vivências, e o quanto somos afetados integralmente quando algo acontece a nós e aos outros que nos são importantes, ao nosso próximo que às vezes nem conhecemos.

O self não é conhecido totalmente em sua essência, mas dele deriva toda sua constituição, e sua integração implica estabelecermos relações que interdependem e não são excludentes.

Pensar na constituição do sujeito a partir de sua totalidade como dimensão de toda sua vivencia e realidade que o marca concretamente, é estar integralmente em todas as situações, e neste sentido, quando estamos, carregamos tudo o que somos, assim como as pessoas significativas para nós.

Do contrário, estaríamos vivendo no modelo de cisão onde se estabelece uma relação que partilha o próprio “eu” diante do equívoco de podermos nos levar pela metade em nossas relações, tendo uma falsa impressão que não sofremos o impacto das catástrofes pessoais e sociais que vivenciamos no cotidiano, assim como os efeitos nocivos que causamos dentro daqueles que são importantes para nós quando cindimos o nosso próprio comportamento.

Falar de relações independentes seria falar de um modelo às vezes vigente em algumas culturas e camadas sociais, em alguns transtornos de personalidade onde existe uma tentativa de mantém-se livre de qualquer influência, enquanto que na realidade pessoal e social de nossa saúde mental somos chamados permanentemente a incluir, a pensar no lado do outro, na dor do outro, a fim de nos movimentarmos neste sentido para um modelo humanitário de convivência social, que implica levar a justiça em conta, e pratica-la antes de qualquer discurso ou tentativa de convencimento.

Relações independentes não existem enquanto somos seres que carregamos conosco nossas emoções, pensamentos, desejos, as pessoas que são importantes para nós, seus significados e significantes.

Não é possível sobreviver a um modelo de cisão quando existem pessoas e sentimentos importantes que carregamos dentro de nós. Este modelo é um equívoco, e os transtornos de personalidade nos mostram o quanto seu comprometimento é danoso para a saúde mental do indivíduo assim como para a sociedade. Relações independentes nunca foram e nunca serão saudáveis, precisamos estarmos atentos!

Este texto foi escrito ao som da música” Bridge Over Troubled Water” de Simon e Garfunkel.

Autor

Claudia Zogheib
Psicóloga clínica, psicanalista, especialista pela USP, atende presencialmente e online. Redes sociais e sites: @claudiazogheib, @augurihumanamente, @cinemaeartenodivã, www.claudiazogheib.com.br e www.augurihumanamente.com.br | Foto: Renato F. de Araujo @renatorock1 ©