Quinto dos Infernos
Algumas décadas antes de Tiradentes entrar para a História, houve, pelas mesmas razões, em Vila Rica, movimento liderado por Felipe dos Santos Freire. Patriotas estavam revoltados com as condições impostas. O governador chamou os revoltosos e pleiteou obter deposição das armas, trocando-a por promessas. Ensarilhadas aquelas, os líderes foram presos e suas casas incendiadas. O fogo constitui maneira segura de destruir evidências. Felipe? Enforcado. Pronto. Aí está estabelecido o padrão de conduta a ser adotado.
Corria o ano da graça de 1.789. Patriotas de olhos abertos estavam indignados. Dentre outros, Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga, Rolim e o alferes Tiradentes —— alferes era posto aquém do de tenente na hierarquia militar da época —— estavam dispostos a alterar o quadro estabelecido.
Mas —— e esse mas tem dimensões estratosféricas! —— dentro de padrão lamentável e brasileiramente consagrado, alguém refletiu, talvez não nestas palavras, mas neste tom: eis minha oportunidade! Ficar de bem com os “home” é bem mais conveniente. Em troca daquilo que seria seu saldo vermelho para com o primeiro escalão, delatou o movimento incipiente, em demonstração positiva de animalidade, em oposição à honra e aos sentimentos humanos. Seu nome? Joaquim Silvério dos Reis, cuja memória não merece nem mesmo um átimo de silêncio.
A partir daí, o governo soltou seus cães de instinto assassino: medida eficaz, simples, rápida, inegociável.
O nobre movimento, que até então era chamado de Conjuração Mineira —— conjuração é planejamento —— passou a ser cinicamente, rotulado, por seus adversários, de Inconfidência Mineira —— inconfidência é falta de fidelidade, deslealdade. Coisas assim. Um absurdo. Mas é um fato. E o rótulo ficou inconvenientemente para a posteridade, alcançando nossos dias.
O resumo da ópera pode ser vazado nos termos seguintes. O Governo levava periodicamente para seus domínios um quinto da produção de ouro do País: era o quinto dos infernos! Em seguida, veio, como corolário, a derrama, imposto adicional cobrado para complementar débitos acumulados. Para recebê-lo, invadiam-se lares e estabelecimentos, subtraindo dali o que houvesse de valor. A pena para os que resistissem era o degredo. Para a África!
Tudo sem contraprestação. Em fórmula simples: pagava-se tudo para nada receber.
Tiradentes admitiu sua participação no movimento. E não só. Assumiu toda a responsabilidade do quadro daí resultante.
Os integrantes do movimento, com os bens devidamente confiscados, foram condenados ao degredo, à prisão e à morte. Como disse Vergniaud: «a revolução devora seus filhos!».
Tiradentes foi enforcado no Largo da Lampadosa, no Rio, no dia 21 de abril de 1792. Como derradeiro ato da «cerimônia» dantesca, hienas “humanas” esquartejaram o alferes. Seus braços e pernas foram distribuídos pela via pública. Sua cabeça foi exposta em Vila Rica. Por fim, seu sangue fez as vezes de tinta para a lavratura de sua certidão de morte. Em síntese, Tiradentes logrou o primeiro prêmio de macabra loteria, com significativos requintes de crueldade, violência exposta, celebrada, estetizada, ritualizada. Freneticamente!
Levou consigo um passado e um nome. E deixou uma semente que vingou e frutificou em seguida.
Reverenciemos, pois, a memória de Felipe dos Santos Freire. Dos componentes da Conjuração Mineira —— e não da inconfidência mineira! E de Tiradentes.
O que importa é o desafio.
Não a recompensa.
A grandeza não consiste em receber honras.
Mas em merecê-las.
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