Quem vigia os vigilantes?

A burocracia, um dos pilares da administração pública, foi originalmente concebida para garantir eficiência, impessoalidade e continuidade na execução de políticas governamentais. No entanto, a expansão descontrolada desse aparato estatal pode transformar o que deveria ser uma estrutura a serviço da sociedade em um mecanismo opaco e autônomo, alheio ao controle popular. A pergunta que surge, então, é inevitável: quem vigia os vigilantes, quando a burocracia se torna poderosa demais?

A burocracia moderna, tal como conhecemos, baseia-se em princípios racionais e legais, organizados para evitar o personalismo e assegurar que decisões públicas sejam tomadas com base em regras claras e previsíveis. No entanto, ao longo do tempo, a tecnocracia ganhou espaço, e os agentes públicos, muitas vezes invisíveis para o cidadão comum, passaram a deter poderes significativos. Esse poder burocrático se manifesta tanto na formulação de políticas quanto na execução de atividades essenciais ao funcionamento do Estado, envolvendo desde a liberação de recursos até a fiscalização de empresas e cidadãos.

O fenômeno do “poder excessivo” da burocracia não é novo. Nas esferas públicas, ocorre uma hipertrofia administrativa, em que regras e processos se multiplicam ao ponto de gerar obstáculos tanto para o desenvolvimento econômico quanto para a prestação de serviços essenciais. A morosidade das decisões administrativas, combinada com a rigidez dos procedimentos, frequentemente leva à chamada “paralisia burocrática”. Isso prejudica a implementação de políticas públicas e frustra expectativas sociais, enquanto agentes públicos justificam a ineficiência sob o manto da legalidade e do formalismo.

Além disso, há o risco da captura do aparelho estatal por grupos de interesse e a criação de nichos de poder interno, nos quais setores específicos da administração se comportam como instâncias independentes, resistindo às diretrizes dos gestores eleitos. Essa fragmentação enfraquece a capacidade do governo de coordenar ações e coloca em risco a harmonia entre os poderes, abrindo margem para conflitos e impasses. Assim, o poder originalmente concedido ao Executivo é, por vezes, exercido pela burocracia de forma autônoma e com pouca supervisão externa.

Em um contexto democrático, é fundamental que existam freios e contrapesos capazes de controlar a burocracia e assegurar que a administração pública opere de acordo com o interesse público. O controle exercido pelo Judiciário e pelos Tribunais de Contas, por exemplo, é essencial para garantir que atos administrativos não desrespeitem a legalidade. Da mesma forma, o papel do Legislativo, por meio de comissões e audiências públicas, é crucial para monitorar e fiscalizar a gestão pública. No entanto, esses controles nem sempre são suficientes ou ágeis para impedir abusos e desvios.

A transparência é outra ferramenta indispensável para o controle da burocracia. O acesso à informação pública permite que a sociedade e os órgãos de controle acompanhem de perto as decisões administrativas, aumentando a responsabilidade dos gestores públicos. Ferramentas como portais de transparência e sistemas de ouvidoria são formas de aproximar a administração dos cidadãos, evitando que o poder burocrático se torne uma caixa-preta.

Contudo, não basta apenas expor dados e processos; é preciso que a participação social seja incentivada e que os canais de controle externo sejam fortalecidos. A sociedade precisa ser mais ativa no acompanhamento das decisões públicas, cobrando dos seus representantes o uso adequado dos recursos e o respeito aos princípios constitucionais que regem a administração pública. A inércia popular diante dos abusos burocráticos é um dos fatores que contribuem para a perpetuação de práticas ineficazes e, muitas vezes, injustas.

A questão sobre “quem vigia os vigilantes” é, portanto, uma provocação necessária. Quando a burocracia se torna poderosa demais, há um risco iminente de que as próprias estruturas criadas para proteger o interesse público se tornem obstáculos para a democracia e a cidadania. A burocracia deve servir ao povo, e não o contrário. Somente por meio do controle contínuo, transparente e democrático é possível evitar que a administração pública se transforme em um fim em si mesma, operando à margem dos valores republicanos.

Autor

Jaquelini Cristina de Godeis
Advogada. Ex-Assistente Especial da Assembleia Legislativa de São Paulo. Especializada em Direito de Família e Sucessões. Pós-Graduanda em Direito Contratual pela PUC-SP e Mestranda em Direito Público.