Populismo e incongruência parlamentar
Na última quarta-feira, 4, a Câmara dos Deputados aprovou, por 449 votos a 12, o Projeto de Lei nº 2564/20 que propõe o novo piso salarial para profissionais da enfermagem com base no INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor). De acordo com o texto, o novo piso salarial para os enfermeiros seria de R$ 4.750,00, atingindo ainda todos os profissionais daquela categoria, como técnicos (que teriam 70% do piso estipulado para os enfermeiros) e auxiliares de enfermagem e parteiras, que fariam jus a 50% daquele piso. Agora o texto segue para a análise presidencial, que poderá sancioná-lo ou vetá-lo.
Apesar da votação expressiva pela aprovação do projeto, em diversos momentos membros da câmara registraram informações que alertavam sobre a “potencialidade lesiva” da proposta, tanto no âmbito público, terceiro setor ou empresarial. A deputada Carmen Zanotto (Cidadania-SC), por exemplo, comandou um grupo de trabalho sobre o impacto financeiro da medida. A deputada registrou que, para as empresas privadas terem orçamento capaz de suportar os pagamentos à categoria, deverá ser realizada a retirada das contribuições sociais da folha de salários, ou seja, sem uma contrapartida a proposta não se sustentaria.
O próprio autor do texto inicial, senador Fabiano Contarato (PT-ES), registrou que a remuneração média dos enfermeiros atualmente é inferior a dois salários mínimos, o que representa R$ 2.424,00 em valores de 2022. Em outras palavras, conscientemente, o senador defendeu um reajuste de mais de 95% do piso com relação aos vencimentos médios praticados no país!
Já o líder do governo, deputado Ricardo Barros (PP-PR), destacou que o governo está empenhado em buscar fontes de financiamento para o piso salarial e que uma opção pode ser a legalização dos jogos de azar no País.
“São R$ 16 bilhões que estão aguardando a fonte de recursos, e nós estamos trabalhando demoradamente e insistentemente na busca de recursos para garantir que as conquistas sejam efetivas”, declarou.
A pergunta que não quer calar: aprovaram, mas não tem efetividade alguma? Foi pura politicagem?
O próprio artigo 113 do ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, proíbe que qualquer proposição legislativa crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita sem estar acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro[1].
Também é expresso na Constituição Federal a competência privativa do presidente da república para propor leis que aumentem a remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica[2].
Longe de discutirmos aqui o merecimento ou não dos importantíssimos profissionais da enfermagem (que também atuaram como verdadeiros heróis na pandemia), estamos alertando para problemas graves como a inexistência de capacidade de pagamento, endividamentos, inflação e responsabilidade fiscal. Por último, é nossa obrigação ponderarmos um possível colapso na saúde.
REALIDADES LOCAIS
Tomemos como exemplo a Fundação Padre Albino, entidade responsável pelos hospitais Padre Albino e Emílio Carlos, além de gerir o AME – Ambulatório Médico de Especialidades, do governo do Estado de São Paulo, todas essas instituições sediadas em Catanduva/SP. A entidade estima que o impacto na folha de pagamento, caso a proposta passe a vigorar, será de algo em torno de R$ 20 milhões anuais:
“O impacto na folha de pagamento da Fundação com o novo piso será em torno de R$ 20 milhões anuais e certamente sem novas fontes de recursos teremos que tomar medidas enérgicas em busca do equilíbrio financeiro dos hospitais, que já acumulam déficit de mais de R$ 100 milhões nos últimos 11 anos”, informou o presidente da Diretoria Executiva da Fundação Padre Albino, Reginaldo Donizeti Lopes.
Outro ponto bastante crítico da proposta para o aumento “isolado” do piso é o desarranjo conjuntural que poderá ser ocasionado nas estruturas salariais de, por exemplo, prefeituras. Apenas como exemplo, os vencimentos de um Cirurgião Dentista com carga horária de 40h semanais no município de Cândido Rodrigues/SP (município de pouco mais de 2.700 habitantes da região de Araraquara/SP) são de R$ 2.821,48 mensais. Já um Auxiliar de Cirurgião Dentista, também com a carga horária de 40h, percebe mensalmente R$ 1.362,00. Seria justo determinar que um Auxiliar de Enfermagem passe a perceber R$ 2.375,00 enquanto o Auxiliar de Cirurgião Dentista perceba praticamente da metade deste valor? Como ficam os princípios constitucionais da isonomia e equidade?
Conclusão óbvia é que muitos municípios estão impossibilitados de promover uma reestruturação coerente que, ao mesmo tempo, cumpra os pisos e promova justiça salarial levando-se em conta a isonomia e a equidade das atribuições e funções.
Também não podemos nos esquecer que, há pouco, já foi imposta aos prefeitos a majoração do piso aos professores da educação básica! Será que as prefeituras teriam espaço para aplicar o novo piso, agora dos profissionais da enfermagem, tendo em vista a limitação de gastos com pessoal em, no máximo, 54% da receita corrente líquida? Não seria essa mais uma lei contraditória e que ensejaria por afrontar a própria Lei de Responsabilidade Fiscal?
Ao que parece, estamos diante de mais uma medida totalmente populista, eleitoreira e que despreza totalmente um planejamento sério, as realidades e peculiaridades locais. Comportamento tipicamente tupiniquim às vésperas de uma eleição.
Fabio Rinaldi Manzano
Administrador público e advogado, membro do Grupo de Excelência em Gestão Pública do Conselho Regional de Administração do Estado de São Paulo (GEGP-CRA/SP). É leitor de O Regional.
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