Os ossos memorialísticos, uma (re)visitação histórica

"O que existe, já existiu; o que vai existir, já existe" (Rei Salomão)

O Quadro “Lição de Anatomia” (1632), de Dr. Tulp de Rembrandt, expõe a dissecação da mão esquerda de “Aris Kindt”, um marginal que havia sido condenado à morte, por assalto à mão armada. A pintura demonstra a teoria do cronotopo (tempo e espaço), na qual “ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais” (BAKHTIN, 1988, p. 211) e delimitam pretérito, presente e futuro. Dessa forma, a organização científica está relacionada com o mistério da pesquisa e a decomposição, por meio do simbolismo ósseo, ou seja, um retorno às origens. No primeiro livro da Bíblia, há um pedido de José: “Quando Deus intervier em favor de vocês, levem meus ossos daqui” (BÍBLIA, Gênesis, 2014, p. 73). Os ossos de José foram transportados pela peregrinação do povo hebreu, rumo à terra prometida, como se houvesse uma anulação antropocêntrica – o pretérito é o futuro eficaz. Outra passagem bíblica, que expõe o simbolismo ósseo, é a de Eliseu. “Jogaram o homem no túmulo de Eliseu e foram-se embora. Aconteceu que, ao tocar os ossos de Eliseu, o homem reviveu e se colocou de pé” (BÍBLIA, II Reis, 2014, p. 414). Nota-se que a perpetuação da historicidade de Eliseu está calcada no efeito da decomposição anulada, porquanto o milagre ósseo parte da inércia ao ato. Tanto os ossos de José quanto os de Eliseu trazem o plano de ressurreição, uma abertura ascendente, na qual o pretérito se torna futuro milagroso. Na Mitologia Grega, Ariadne elucida a imagem óssea das vítimas do Minotauro, porquanto o extermínio do monstro conduz à revisitação histórica. Com a morte do monstro, há a sobreposição às grandezas, gerando um vazio existencial, no paralelismo, pela figura feminina, enquanto relatividade discursiva. O Minotauro, bem como a Esfinge, pratica a antropofagia, cuja materialidade óssea conota a sapiência latente (presente ou futuro) pelo extermínio da ignorância (pretérito). Um fato curioso aconteceu em 897 (d.C.), o “Sínodo do Cadáver”, episódio do julgamento póstumo do Papa Formoso. A imagem episcopal expôs o corpo exumado e revelou a maldição clerical, cujo mistério poderia esperar um contraditório papal. A revisitação histórica é maldita, apesar de reconhecer a bênção da canonização, na qual a ideia jurídica produziu o ato decadente, partindo do pretérito ao presente. Se levarmos em consideração as concepções sobre a História ser uma caveira (Benjamin, 1928) e a alma estar no sangue, a eternidade permanecerá nos ossos memorialísticos: na viagem ao futuro levaremos o pretérito, a união de dois pretéritos produzirá um futuro, os ossos da ignorância provam a sabedoria e, por último, o sagrado e o profano. Como disse o Profeta Ezequiel: “Poderão reviver esses ossos”?

Autor

Prof. Dr. John David Peliceri da Silva
Formado em Letras, em Direito e Pedagogia. Mestre, Doutor e Pós-doutorando em Letras pela Unesp. Atua como Supervisor Educacional na Secretaria Municipal de Educação de Catanduva.