Os melhores filmes do Festival do Rio 2023

Em sua 25ª edição, entre os dias 05 e 15/10, o Festival do Rio, um dos eventos de cinema mais importantes do Brasil, levou ao público 40 estreias mundiais, dentro de uma programação com 53 longas e 38 curtas-metragens, muitos deles premiados em festivais como Berlim, Cannes, San Sebastian e Veneza.

O Festival do Rio nasceu em 1999 após a junção da Mostra Banco Nacional e do Rio Cine Festival, eventos que integravam o calendário cultural da cidade do Rio desde a década de 1980. O Festival do Rio (Rio de Janeiro Int'l Film Festival) tornou-se uma vitrine para se conhecer a cinematografia de diversos países.

Mais uma vez estive no Festival e lá pude conferir filmes imperdíveis, que recomendo agora nesses drops. Parte deles deve estrear no Brasil até dezembro. Confiram.

Dogman

Retorno triunfal de Luc Besson, depois de dois sucessivos fracassos, ‘Valerian e a cidade dos mil planetas’ (2017) e ‘Anna – O perigo tem nome’ (2019). O ator Caleb Landry Jones, de ‘Três anúncios para um crime’ (2017), brilha num papel duro e difícil, de um jovem impossibilitado de andar após ser ferido na coluna por uma bala, e hoje trabalha como drag queen em uma boate interpretando músicas de Edith Piaf. Torturado pelo pai e pelo irmão mais velho quando criança, ficou aprisionado em um canil, sendo criado por cães, e deles hoje subtrai afeto. Até que é perseguido por um grupo de criminosos por causa de uma dívida passada. Com cores exuberantes, um roteiro amarrado com tempo atual e flashbacks, e muitas cenas fortes de violência e tiroteios, é um filmão de ação e suspense com drama. Concorreu ao Leão de Ouro e ao Queer Lion e ganhou em Veneza um prêmio especial.

Priscilla

Retrato biográfico de Priscilla Presley, a esposa de Elvis, pela ótica delicada e afetiva de Sofia Coppola. Mais contida que de costume, a diretora volta-se para o cinema autoral, mas com ares comerciais – até porque contar parte da vida de Elvis chama público imediatamente. Cailee Spaeny, de ‘Suprema’ (2018), é um êxtase na tela, muito bem fotografada, e pelo papel central ganhou o prêmio de atriz no Festival de Veneza – e deverá receber indicação ao Oscar em 2024. De uma menina simples e tímida criada pela mãe e pelo padrasto entre Maine e Connecticut, conheceu por acaso numa festa o rei do rock, e com ele conviveu por oito anos – do casal nasceu a filha Lisa Marie. Há um jogo de cores com paletas diferenciadas que mudam a cada momento de vida da personagem, o que é um trabalho excepcional – no começo tudo é muito pastel, e quando Priscilla vai morar com Elvis, as cores ficam vivas, e Cailee se transforma com novas feições, cabelo e comportamento. Um talento de atriz em um filme charmosinho.

Conto de fadas

Um de meus diretores russos preferidos, Aleksandr Sokurov, de ‘Arca russa’ e ‘Taurus’, faz aqui um filme experimental complexo, que revê os desdobramentos da História contemporânea a partir da Segunda Guerra. Utilizando deepfake e inteligência artificial – nos letreiros iniciais do filme ele sacaneia o público com isso – ele coloca no purgatório Churchill, Stalin, Hitler e Mussolini, dialogando sobre assuntos como guerra, religião e vida, enquanto Jesus Cristo tenta se levantar, doente e cansado. Polemiza figuras históricas, cria um visual em preto-e-branco de puro delírio, e faz um dos filmes mais estranhos e diferentes do cinema atual. Exibido no Festival de Locarno.

Pobres criaturas

Saí de uma sessão lotada onde ouvíamos risos e aplausos incessantes durante algumas cenas. Todos os olhares estavam atentos a cada minuto para a tela. Tínhamos de estar vidrados, pois Yorgos Lanthimos exige atenção e preparo psicológico. De origem grega, Lanthimos fez os estranhíssimos ‘Dente canino’ e ‘O lagosta’, e depois o sórdido ‘O sacrifício do cervo sagrado’ e há poucos anos, uma história real com truques visuais belíssimos, ‘A favorita’. Agora, com ‘Pobres criaturas’, realizou nova façanha, voltando-se ao surrealismo, aproveitando ideias de Frankenstein, sem pudor em usar cenas de sexo e diálogos sujos. Talvez seu filme mais incômodo e visceral, com um elenco que brilha em cada aparição – Emma Stone, Mark Ruffalo e Willem Dafoe, que deverão pintar na lista do Oscar como indicados em categorias como atriz e atores coadjuvantes. Um filme de comédia, drama e ficção científica, difícil de comentar, pois podemos incorrer num erro brutal, o spoiler. Em síntese, na trama temos uma jovem aparentemente portadora de uma deficiência intelectual, que se atrapalha e diz coisas indesejáveis (Emma Stone, que se transforma ao longo do filme). O pai, um médico e cientista desfigurado (Willem Dafoe), cuida dela num casarão. Ela é induzida pelo pai a se casar com um rapaz que a ajuda nos afazeres diários, até que conhece um galanteador rico (Ruffalo, que tira boas risadas do público) e foge com ele. Nessa jornada de transformação, um rito complexo e excêntrico de passagem, ela vai desfrutar maravilhas e dores do mundo. Prepare-se para ver cenas chocantes, que só o diretor ousaria fazer. As técnicas de cinema dele retornam com mais profusão – lente grande ocular, a olho de peixe; cores irreais, cenários oníricos etc. Venceu o Leão de Ouro em Veneza e com certeza será finalista no Oscar de 2024, em categorias como roteiro – escrito pelo seu parceiro de trabalho, Tony McNamara, adaptado do romance de Alasdair Gray, além de direção, direção de arte, figurino e até melhor filme.

All of us strangers

No final da sessão que conferi no Rio, parte da plateia foi às lágrimas. Escutei muito ‘sniff sniff’ no desfecho desse belo drama com tom de fantasia. Assim como ‘Pobres criaturas’, é difícil falar dele sem cometer spoilers, por isso tenho de me conter. O que eu posso falar é que é um drama sensível, que parece se passar num futuro em que só existe um personagem (o incrível Andrew Scott, que deverá ser indicado ao Oscar), morador de um condomínio. Ele vive lá sozinho, sem vizinhos, e todo dia observa pela janela um rapaz nos jardins do prédio (outro bom personagem, o de Paul Mescal). Até que um dia esse estranho vai até sua porta e faz uma proposta. Enquanto ele reflete sobre ela, faz uma visita passageira aos pais (Jamie Bell é o pai, e Claire Foy, a mãe, num momento marcante da carreira, provável indicada ao Oscar em 2024). E aos poucos as histórias dele, do rapaz desconhecido e dos pais vem à tona, num mistério que só se revela nos minutos finais. Prepare-se para chorar nesse filme doloroso, bem conduzido pelo elenco e com uma direção sempre coerente de Andrew Haigh, de ‘45 anos’ e ‘A rota selvagem’ – o roteiro é dele, baseado no livro ‘Strangers, escrito pelo japonês Taichi Yamada no fim dos anos 80.

Não abra!

O terror indiano anda em alta, dê só uma espiada na Netflix que irá comprovar. E esse aqui é um exemplar criativo, instigante e que dá medo. Produzido por indianos e com elenco ou indiano ou com descendentes de, como a protagonista, Megan Suri, da série ‘Atypical’. Ela é uma estudante que, num incidente, quebra um recipiente de vidro que sua estranha amiga carrega na escola. Dentro dele, segundo a garota, era aprisionado um demônio ancestral. A entidade começa então a perseguir as duas, deixando um rastro de mortes monstruosas. Se gosta do gênero, com certeza irá curtir. O clima é de angústia constante, e o final é bem bizarro.

A suprema

Exibida no Festival de Toronto, essa foi uma das grandes surpresas no Festival do Rio, uma fita independente colombiana simples e cheia de graça. Em um vilarejo remoto chamado ‘La Suprema’, que não tem energia elétrica, uma garota sonha em ser lutadora de boxe. Enquanto isso, a comunidade aguarda ansiosamente a última partida no ringue de um boxeador querido, ídolo da Colômbia e tio daquela menina que quer lutar. Os moradores articulam uma forma de puxar energia elétrica para a vila e adquirir uma TV para acompanhar a luta que será transmitida ao vivo. É de um roteiro delicioso, que nos prende e acaba sendo um sopro de vida.

Autor

Felipe Brida
Jornalista e Crítico de Cinema. Professor de Comunicação e Artes no Imes, Fatec e Senac Catanduva