Os bons filmes da 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

A 47ª Mostra Intl. de Cinema de SP começou no dia 19/10 e segue até dia 01/11, em São Paulo, com sessões presenciais em diversas salas de cinema da capital e também em três plataformas online (com sessões gratuitas), que são o Sesc Digital (https://sesc.digital/home), Itaú Cultural Play (https://assista.itauculturalplay.com.br/Home) e SPCine Play (https://www.spcineplay.com.br/pages/1-1-inicio), com limite de views. Confira drops com rápidos comentários dos bons filmes desse ano da Mostra que conferi nos últimos dias.

Anatomia de uma queda (França, 2023, de Justine Triet)

Aguardado pelo público que acompanha a Mostra, por ter sido o ganhador da Palma de Ouro desse ano, o novo trabalho da diretora Justine Triet é um ótimo exemplar do novo cinema da França, um filme de 151 minutos dividido em duas partes; na primeira, acompanhamos uma escritora alemã que encontra o marido morto no quintal de casa, situada nos Alpes. Foi o filho de 11 anos, que possui problemas de visão, quem encontrou o corpo estirado no chão com um ferimento na cabeça e gritou pela mãe. Na segunda parte do filme, temos um autêntico drama de tribunal – a mulher é acusada de ter matado o marido, mesmo existindo hipótese de uma queda do telhado. Ela matou mesmo? O marido caiu? Alguém o jogou de lá? Ao longo de uma trama complexa, cheia de pecinhas soltas, acompanhamos o relacionamento tumultuado do casal e o que levou o filho a perder parte da visão, ou seja, investiga-se profundamente o histórico daquela família. É um dos melhores filmes do ano e deve ser finalista do Oscar, acredito que de filme estrangeiro e de melhor atriz para Sandra Hüller, que atua de maneira versátil e faz uma entrega de personagem impressionante. Exibição na Mostra ainda nos dias 31/10 e 01/11.

Zona de interesse (Reino Unido/Polônia/EUA, 2023, de Jonathan Glazer)

Ganhador de quatro prêmios em Cannes, incluindo o do júri e o da crítica, esse é um grande filme e o retorno de Jonathan Glazer, que não filmava desde ‘Sob a pele’, ou seja, há 10 anos. E voltou com tudo em novo trabalho autoral, alegórico e que trata da ideia da ‘banalidade do mal’, de Hannah Arendt. Uma família alemã leva uma vida perfeita durante os horrores da Segunda Guerra; são eles um comandante e sua esposa, que moram a poucos metros do campo de Auschwitz, e para não encarar diariamente as atrocidades ao fundo, o casal ergue na casa um muro alto com flores, cercado por hortas. Ela, interpretado por Sandra Hüller, cuida dos filhos pequenos, faz festas na piscina, cantam e dançam, enquanto ao lado a fumaça de corpos de judeus queimados sobe pelos ares. Eu achei aterrador mesmo não mostrando um pingo de violência; tudo é subentendido, nos olhares e nas cenas de fundo. Glazer filma tudo distanciado, sem close, com o elenco afastado, e com enquadramentos geométricos, para comparar a arquitetura da casa com a arquitetura dos campos de concentração, ou seja, evidenciar a alienação e a arquitetura do mal. Baseado no livro de Martin Amis. Exibição presencial ainda no dia 31/10.

Vale do exílio (Líbano/Canadá, 2023, de Anna Fahr)

Para fugir da guerra da Síria, duas irmãs se refugiam em um assentamento no Vale do Beka, no Líbano. Uma delas está grávida e procura o marido. A outra, sai em busca do irmão pequeno, desaparecido. Exiladas, encontram apoio num grupo de mulheres que estão nas mesmas condições, a de sobreviver. Exibido em festivais como Varsóvia e Vancouver, é mais uma pequena joia do cinema cult que a Mostra traz para os cinéfilos. Gostei muito e recomendo esse filme digno e humano, sobre mulheres determinadas que lutam pela sobrevivência diante de uma guerra interminável e massacrante. Exibição presencial ainda nos dias 29 e 31/10 e disponível na plataforma de streaming do Sesc Digital (gratuito, com limite de 2000 visualizações).

Uma revolução em quadros (EUA, 2023, de Till Schauder e Sara Nodjoumi)

Exibido no Festival de Tribeca, esse excelente doc norte-americano produzido pela HBO deverá ser finalista do Oscar de 2024. Resgata a trajetória do pintor iraniano Nicky Nodjoumi que enfrentou a Revolução Iraniana por meio de suas pinturas expressionistas e surrealistas, que traziam para a mesa de discussão assuntos como a repressão à mulher, a relação do país com os EUA, a postura autoritária e inconforme de aiatolá Khomeini e a mobilização inconsequente das massas pelo governo. E o ponto de partida do filme é o desaparecimento de diversos quadros do artista do Museu do Irã quando a revolução estourou em 1979. Nodjoumi teve se exilar nos EUA e até hoje não viu mais aquelas pinturas, consideradas subversivas. Emocionante, com um bonito desfecho, fala do poder transformador da arte e de como ela pode revolucionar o pensamento crítico. Quem dirige é também a filha de Nicky, Sara Nodjoumi, que faz as entrevistas e vasculha o acervo do pai. Exibição presencial ainda no dia 01/11.

Ervas secas (Turquia/França/Alemanha, 2023, de Nuri Bilge Ceylan)

Outro cineasta muito aguardado na Mostra Intl. de Cinema de SP, o turco Nuri Bilge Ceylan, ganhador da Palma de Ouro por ‘Sono de inverno’ em 2014. Cinco anos atrás, o filme anterior dele foi exibido na Mostra, ‘A árvore dos frutos selvagens’. Esse ano, é a vez de ‘Ervas secas’, um pequeno grande épico de 197 minutos, sobre um professor de artes que é enviado a uma vila remota na Anatólia no inverno rigoroso. O local está tomado pela neve, e os moradores vivem trancados em suas casas para fugir do frio. Os alunos gostam do professor, pela gentileza como os trata, até que duas estudantes o acusam de contato íntimo com elas, o que o faz entrar num turbilhão de dilemas e insegurança naquele vilarejo. Enquanto lida com as acusações infundadas, fica próximo de uma professora ferida num atentado a bomba. Quem conhece o cinema contemplativo e dialogado de Ceylan, com sua estonteante fotografia em ambientes internos, irá gostar. Venceu o prêmio de atriz em Cannes, a turca Merve Dizdar – que na premiação fez um discurso contundente em defesa às mulheres turcas, dando um recado claro ao governo extremista de Erdogan. Distribuído no Brasil pela Imovision, deve estrear no próximo mês nos cinemas. Exibição na Mostra ainda no dia 01/11.

No Adamant (França/Japão, 2023, de Nicolas Philibert)

O ganhador do Urso de Ouro em Berlim foi um dos filmes mais aplaudidos pelo público na Mostra. É um documentário – um dos poucos a ganhar o prêmio principal em Berlim – sobre uma embarcação que serve de centro psiquiátrico no cais do Rio Sena, em Paris. Nesse projeto do governo da França, que existe desde 2010, uma equipe de cuidadores, enfermeiros e médicos atuam para restabelecer o ânimo e a dignidade dos pacientes que chegam diariamente, com um trabalho humanizado. A proposta é inserir os doentes em trabalhos manuais, de pintura e de gastronomia, por exemplo – lá, os pacientes pintam, expõe suas obras ao público que os visita, fazem tortas e café e os vendem. Bonito, delicado e de temática urgente, vem num momento certo, em meio a revolução psiquiátrica que a medicina cruza, que é a humanização no atendimento aos doentes mentais. Exibição ainda no dia 31/10.

Samuel e a luz (Brasil/França, 2023, de Vinicius Girnys)

Doc brasileiro interessante e bem editado, sobre um garoto chamado Samuel, que mora num vilarejo de pescadores em Paraty/RJ. Seus dias são marcados pela tranquilidade, num local idílico e estacionado no tempo. Até que se depara com uma nova realidade, a chegada da energia elétrica e das tecnologias. Foram seis anos gravando o crescimento de Samuel em meio a essas transformações, em que se discute o choque da modernização pelo ponto de vista de um menino. Coprodução Brasil/França, exibido no Festival Visions du Réel. Exibição presencial ainda no dia 01/11.

Afire (Alemanha, 2023, de Christian Petzold)

Em seu novo trabalho, o diretor alemão Christian Petzold deixa de lado seus filmes complexos de drama de guerra com ar de ficção científica, e se volta para um drama com humor e romance. É um filme diferente do que estamos acostumados a ver dele – é o diretor de ‘Phoenix’ e ‘Em trânsito’. São alguns dias na vida de um jovem escritor (o austríaco Thomas Schubert, num bom desempenho) que vai com um amigo para uma casa de férias no mar Báltico. Lá tentará terminar seu novo livro, enquanto aguarda a chegada do editor. Ele conhecerá uma mulher hospedada no quarto ao lado que mudará sua vida. Os dias são quentes, ele está preocupado com o livro, até que um incêndio de grandes proporções atinge florestas de região, deixando-os isolados e sem comunicação. É um estudo de personagem, com boa fotografia e muito sentimento autoral na história. No elenco temos a atriz alemã Paula Beer, que já trabalhou com Petzold em ‘Undine’. Venceu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim. Exibição presencial ainda no dia 01/11.

Arte da diplomacia (Brasil, 2023, de Zeca Brito)

Doc brasileiro de um amigo querido, o gaúcho Zeca Brito, de ‘O guri’, ‘Legalidade’ e ‘Hamlet’ (este, exibido na Mostra do ano passado). Trata de como a cultura brasileira teve papel primordial e exemplar na luta contra o nazifascismo na década de 1940, quando o Brasil participou de um leilão no Reino Unido com centenas de pinturas doadas por 70 artistas modernistas. No longa, o diretor entrevista diplomatas, historiadores da arte, professores e artistas, e resgata em fotos, reportagens e vídeos esse momento crucial tanto para a arte brasileira quanto para a política mundial. Exibição na Mostra ainda no dia 31/10.

Pedágio (Brasil, 2023, de Carolina Markowicz)

Um dos melhores filmes da Mostra desse ano, com Maeve Jinkings num papel soberbo, além da ótima e premiada interpretação do jovem ator Kadu Alvarenga. Maeve interpreta uma mãe divorciada que trabalha como cobradora num posto de pedágio. Ela tem um filho gay que gosta de cantar e dançar e fazer vídeos para a internet. Ela tem dificuldade em aceitar o filho homossexual e, orientada por uma colega de trabalho, tenta levá-lo a um centro de cura gay mantido por um pastor português. Fotografia esplêndida com cores vibrantes, direção caprichada de Carolina Markowicz, que havia trabalhado com Maeve em ‘Carvão’, e um roteiro duro e sério colocam o longa na lista dos melhores filmes brasileiros do ano. Exibido nos festivais de Toronto e San Sebastian. Houve duas exibições na Mostra, nos dias 20 e 24/10. Estreia em breve nos cinemas pela Paris Filmes.

Autor

Felipe Brida
Jornalista e Crítico de Cinema. Professor de Comunicação e Artes no Imes, Fatec e Senac Catanduva