Os adultos do futuro

Ontem assisti a um vídeo de Fernanda Torres e Walter Salles ganhando um prêmio, e no discurso ela dizia que no passado, enquanto a história da família Paiva acontecia, um jovem amigo da família (Walter Salles) e uma criança e filho (Marcelo Paiva), tendo vivido a história, recontaram em forma de livro que virou filme para que todos nós pudéssemos entender o que aconteceu naquela época.

Que história nossos filhos e netos irão recontar sobre todos nós — nas rotinas da vida cotidiana, nas brincadeiras, na presença (ou ausência) dos pais, na vivência familiar e na política — tantas vezes banalizadas pela pressa dos dias e pela urgência de exibir feitos nas redes sociais, diante de crianças que assistem silenciadas a um mundo desconhecido que se impõe, enquanto seus pais se ocupam de suas necessidades narcísicas.

Antigamente as crianças brincavam na rua, faziam piquenique brincando de faz de conta com brincadeiras improvisadas que surgiam de suas fantasias que revelavam algo individual delas: a areia e gravetos que viravam comida, o papelão que escorregava na grama, os castelos de areia na praia, carrinho de areia que virava transporte de primos, bonecas e cães, pedrinhas formando mosaico no chão.

O mundo mudou, e ao mesmo tempo que é impensável brincar na rua por conta do perigo, será que não estamos nos perdendo em desejos íntimos ao expor as crianças a verdadeiras maratonas do que pode ou não, do que deve ou não, perdendo a oportunidade delas poderem escolher por elas mesmas enquanto as colocamos em atividades que as ensinam como dançar, como brincar, e perdemos momentos de qualidade onde a imaginação seria a grande janela de oportunidades, não as expondo em ter que corresponder às expectativas dos pais, deixando elas apenas serem.

As crianças vão para a escola cada vez mais cedo, e nos fins de semana e férias, será mesmo que elas não podem deixar o relógio de lado e ficar de pijama até mais tarde? É só domingo que elas podem comer pão de queijo, fazer bolo e desejar?

Enquanto os pais se realizam nos filhos, idealizando a infância que imaginam ser a melhor para eles, deixam de lado a espontaneidade das festas improvisadas, da família reunida, e no futuro, a curiosidade que foram silenciadas pelas demandas traumáticas dos pais e avós, reaparecerão como um mantra que ressurge para contar a elas quem de fato elas são, suas origens e de onde vieram.

Do contrário, o que elas vão contar de suas infâncias? Qual vai ser o tema de suas falas? O que irá virar livro ou filme?

Sempre que vejo crianças brincando de maneira improvisada e com roupas aleatórias sem o alinhamento dos pais, percebo o quanto as coisas não estão totalmente perdidas frente aos pais que, muitas vezes despreparados, esquecem que no futuro, “ser” é o que vai contar, muito mais do que possam ter enquanto “treinam” seus filhos.

As crianças não abstraem somente o que elas veem, mas a intenção contida no desejo dos pais enquanto, “distraidamente”, revelam suas inseguranças, suas iras, seus temores, seus traumas, sobretudo aquilo que não tiveram a coragem de rever neles mesmos para não deixarem de herança a seus filhos e netos.

No final das contas, os não ditos quando pensados, olhados e tratados individualmente, são a melhor herança que podemos deixar aos filhos e netos para, no futuro, serem contados por eles mesmos como memórias que serão deixadas para os filhos dos filhos dos filhos deles.

Boas férias!

Música “Pra Melhorar” com Marisa Monte, Seu Jorge e Flor.

 

Foto do Acervo @zogheibclaudia ©

Autor

Claudia Zogheib
Psicóloga clínica, psicanalista, especialista pela USP, atende presencialmente e online. Redes sociais e sites: @zogheibclaudia, @augurihumanamente, @cinemaeartenodivã, www.claudiazogheib.com.br e www.augurihumanamente.com.br