Olhos de pomba

Há um livro na Bíblia que é pura poesia. Poesia erótica, na verdade. Trata-se de Cânticos (ou Cantares), cujos versos retratam o amor muito intenso, sentimental e sexualmente ardente, de um jovem casal. Uma temática constante em praticamente todos os parágrafos é a capacidade de ambos se elogiarem o tempo todo. Eles se amam na alma e no corpo e não cessam de verbalizar a impressão cativante que cada qual exerce sobre o outro. Todo o texto é um diálogo de carícias em forma de palavras.

Pode-se dizer que Cânticos é um livro cheio de “cantadas”. Cantadas na mais elevada acepção da palavra. O lirismo é elegante e uma análise semiótica demonstra a grandeza imagética de sua construção literária. Mas, para nós, sobretudo para nós homens, não é esta a questão que importa. Em termos práticos, importa a comparação entre aquele homem e o homem moderno. Importa destrinchar os paralelos entre o homem que deve ser, arquetípico, e o homem que é, o homem que tem sido, o macho pós-moderno “sem eira nem beira”.

O quarto capítulo é paradigmático. Dentre as muitas cantadas, expressas no antigo estilo das comparações simbólicas com a natureza (muito comuns à época), uma desperta especialmente a atenção. No primeiro verso, o Amado diz à Amada que ela tem “olhos de pomba.” Esta expressão revela uma sensibilidade aguda, realmente profunda e compreensiva da mulher. Você já observou o olhar das pombas? É extremamente doce. A pomba é uma ave com olhar de cordeiro. Pare um dia, em qualquer praça onde elas se aninham, e preste atenção. Você perceberá que os olhos das pombas são gentis, ternos, inocentes, dignos. Não se desenha aquela poderosa penetração caçadora das águias, a esperteza citadina dos pardais ou a fixação realista da coruja. O olhar da pomba é um olhar que enamora candidamente.

Quem dentre nós, homens de muita ou de pouca fé, é capaz de sondar assim o olhar de uma mulher a ponto de poder compará-lo ao do pássaro que o próprio Espírito Santo escolheu para apresentar-se corporalmente quando do batismo de Jesus? Quem dentre nós está apto para sentir os pensamentos e pensar os sentimentos expressos pelo olhar de uma mulher que, como a pomba, no ensino de São Tomás de Aquino, “não tem fel”, não é amarga? Mais: quem dentre nós é capaz de tudo isto apreender, compreender e, então, dizer?

Somos ainda capazes de ir além do pouco nobre “oi, princesa”? Somos capazes de qualquer jogo de palavras mais sensível à realidade da mulher-indivíduo que vez ou outra se nos afigura como musa inspiradora? Mas, vem cá, ainda há quem se inspire de fato? Há muito que não leio poesia e prosa contemporâneas capazes de edulcorar prosa e poesia realmente elogiosas à mulher. Incapazes de elogiar suas amadas, é ao Google com suas buscas por “frases sobre amor”, “frases de namoro”, “poemas de amor”, etc, depois copiados a mão em cartões igualmente padronizados, que a generalidade dos homens tem recorrido quando precisa lisonjear alguma mulher com flores e bombons ou nem com flores e bombons -- apenas com mensagens copiadas e coladas no WhatsApp ou no Instagram.

E você, já viu admirado e já elogiou emocionado alguns “olhos de pomba”?

Autor

Dayher Giménez
Advogado e Professor