O risco de não se arriscar

Eu coleciono relógios de pulso. É minha fixação, desde tempos imemoriais da infância. E uma das coisas mais chatas é riscar a caixa (o corpo de metal) de um relógio novo. Mas a melhor coisa, que é a graça e o gosto do negócio, é usar. Não é possível colocar um relógio no pulso sem se arriscar a riscá-lo: o risco está intimamente ligado ao uso. Igualmente é a vida.

Se você quer ter o prazer de usufruir a existência com qualidade espiritual, o seu coração vai necessariamente ganhar riscos em sua lataria de carne e sangue. Nós não somos o Homem de Lata, o do “Mágico de Oz”, sem coração, bombeando apenas frieza lógica e equacional nas sinapses, incapazes de sofrer os danos de pensar e sentir ao mesmo tempo em que se sente e se pensa.

Se quisermos amor, haverá riscos de rejeição, indiferença e traição. Se quisermos alegria, a tristeza baterá à nossa porta de vez em quando. Enfim: se quisermos vida, optamos por todos os seus meios e movimentos, processos e instrumentos, ainda que eles causem aquilo que justamente não desejamos como parte integrante, essencial, do processo de possuir aquilo que desejamos. O trauma não é opcional.

Como diz o caipira, não sem certa dose de sabor proverbial bíblico, “não dá valor ao mel quem não prova do fel”. Com o tempo, inclusive, passamos a ter prazer nas vicissitudes da vida (porque elas nos ensinam). E, com sabedoria, chegamos a adorar, sem masoquismo, a dor que permitiu o contentamento.

Acontece o mesmo com os relógios, aliás. Hoje minha preferência é pelos usados, pelos mais antigos, pelos chamados “vintage”, ou seja, por aqueles que têm história para contar. E só tem história para dividir quem vive, quem atravessa o mundo e seus caminhos sem fazer muita conta dos carrapichos, dos pés feridos, do cansaço do trajeto.

Não adianta deixar o relógio guardadinho na caixa de veludo, longe do mundo real e do uso para o qual ele foi feito. Não adianta deixar a vida estagnada, hiper-protegida numa bolha-redoma de precauções chatas e defensivas. Corra os riscos antes que a morte te risque do planeta!

Autor

Dayher Giménez
Advogado e Professor