O ponto de vista da formiga
A formiga está no formigueiro. Mas também está na cozinha, no Coliseu, na rua, na praça, na sacristia da igreja, na sorveteria, no cemitério, nos corredores da Nasa e do Castelo de Windsor, no bebedouro d’água dos camelos de Gizé, no zoológico, no Museu do Louvre, em um taxi em Nova York, no banheiro público, no carpete do Senado Federal, no lixão. A formiga está no mundo todo. A formiga está, agora, embaixo da sua cama, ao lado da sua cadeira. A formiga te observa.
O que a formiga pensa quando vê nossos pés próximos à sua cabeça? Sentirá ela o medo aterrorizante que sentiria um homem diante de um Patagotitan Mayorum, o maior dinossauro descoberto? O que a formiga teoriza quando, noite feita, pode erguer seus olhos para o céu e enxergar estrelas e lua e estrelas cadentes? A formiga se admira, como Kant se admirou? A formiga se apaixona, como Sinatra, e pede “Fly me to the moon / Let me play among the stars / Let me see what spring is like on / Jupiter and Mars” | “Leve-me até a lua / E deixe-me brincar entre as estrelas / Deixe-me ver como é a primavera / Em Júpiter e Marte”?
O que a formiga pensa da rainha que domina todo o formigueiro, concentrando em si todo o trabalho e toda a renda das operárias? Será que ela sonha, como a cachorra Baleia sonhava, com as gorduras e doçuras mais substanciais que a monarca mastiga solitária? Será que ela teoriza sistemas de divisão igualitária dos bens ou de meritocracia e liberdade para crescimento pessoal? Haverá um Adam Smith e um Karl Marx entre estes simpáticos insetos?
Estando no cinema, o que a formiga diria do filme “Vida de Inseto” (1998)? E se em uma sala de aula do Ensino Médio, qual seria sua opinião sobre Esopo e La Fontaine quando lesse ou lhe lessem “A Formiga e a Cigarra”? Sentir-se-ia representada, com lugar de fala? Concordaria, lisonjeada, com o rei-filósofo Salomão, que assim a louvou?: “Observe a formiga, preguiçoso, reflita nos caminhos dela e seja sábio!” (Provérbios 6:6).
O que a formiga tem a dizer sobre os pratos regionais que levam saúvas tostadas com farinha e sal? O que a formiga tem a dizer das disputas partidárias, feromônicas, entre a formiga que prefere coxinha de frango com catupiry e aquela que se delicia com mortadela, aquela toda salpicada de toucinho branco? E quanto à formiga que se locomove na marmita de quem pega Uber (que querem regularizar)? E a formiga que anda de ônibus, que pensa de não ter sido “só pelos 20 centavos”? Aposto que a formiga que andava pelo gabinete da Dilma no Palácio do Planalto não pensa igual...
A formiga está “nas escolas, nas ruas, campos, construções”, diferenciada por um RG ou por um CPF guardados na carteira ou pela indigência de farrapos, cobertor velho, marmita de ontem e um cão, o querido cão que acompanha a formiga-mendiga, debaixo da ponte. A formiga está cozinhando no seu apartamento na Vila Nova Conceição ou está morrendo de fome no Vale do Jequitinhonha. A formiga tem passaporte e está no Coliseu. A formiga não tem carro ou tem carro mas gosta de correr e, então, está na rua. A formiga joga farelos de pão aos pombos e os nega a Lázaro. A formiga crê em Deus e está ajoelhada diante do Santíssimo. A formiga adora sorvete de pistache. A formiga morreu e tem cova rasa ou mausoléu de mármore. A formiga estudou Astronomia. A formiga é cortesã da realeza. A formiga leva e traz turistas diante das pirâmides. A formiga é zeladora no jardim zoológico. A formiga é curadora da nova exposição sobre Giotto na capital francesa. A formiga é imigrante paquistanesa e dirige um Ford Crown Victoria amarelo-ovo na “cidade que nunca dorme.” A formiga está mijando em um vaso sanitário sujo. A formiga é vice-presidente da comissão de blá-blá-blá e mi-mi-mi na cúpula menor, voltada para baixo, do Congresso Nacional. A formiga dirige o caminhão do lixo e cata este mesmo lixo para se alimentar. Você está deitado na cama. Você está sentado na cadeira. Você está se observando?
Você é a formiga. Eu sou a formiga.
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