O inferno são os outros

A frase "O inferno são os outros" é uma das mais conhecidas do filósofo francês Jean-Paul Sartre, e aparece na peça Entre Quatro Paredes, de 1944. Nela, três personagens estão presos juntos em uma sala por toda a eternidade — e ali, na convivência forçada, percebem que o verdadeiro tormento não é o lugar, mas a presença constante do outro, com seus julgamentos, olhares e expectativas.

À primeira vista, a frase pode parecer um convite ao isolamento, mas na verdade, ela é um espelho que reflete nossa profunda dificuldade em lidar com o outro — e, consequentemente, conosco mesmos. As relações humanas são, sem dúvida, desafiadoras. Mas é exatamente nesses desafios que se escondem nossas maiores oportunidades de crescimento e evolução.

A convivência nos obriga a olhar para dentro. Aquilo que mais nos incomoda nos outros geralmente revela aspectos que também habitam em nós — às vezes de forma latente, às vezes de forma reprimida. O outro é, muitas vezes, o espelho que nos mostra o que precisamos trabalhar, curar ou desenvolver.

A psicologia já compreendeu isso há muito tempo: projetamos nos outros aquilo que ainda não conseguimos aceitar em nós. E a literatura, como reflexo sensível da alma humana, também aborda essa questão com maestria. Um exemplo emblemático é a obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. Bentinho, o narrador, projeta em Capitu sua própria insegurança, ciúmes e desconfiança. Ele enxerga nela uma suposta traição, mas o romance nunca dá uma prova concreta disso. O que vemos, com sutileza genial, é a construção de uma narrativa moldada pelas emoções e fragilidades do próprio narrador.

Tal como Bentinho, muitas vezes culpamos os outros por dores que são nossas, acusamos para não ter que nos responsabilizar, rejeitamos para não enfrentar nossas próprias sombras. Mas é justamente nesse jogo de espelhos que mora a chance de amadurecer.

Se o inferno são os outros, como disse Sartre, é também com os outros que podemos encontrar o céu — se tivermos a coragem de enxergar o que cada relação nos ensina sobre nós mesmos. O convívio humano não é castigo; é caminho. E todo caminho de evolução passa, inevitavelmente, pelo outro.

Autor

Ivete Marques de Oliveira
Psicóloga clínica, pós-graduada em Terapia Cognitivo Comportamental pela Famerp