O Grão de Ervilha

Um conto infantil muito famoso, de Hans Christian Andersen, conta a estória de um príncipe-herdeiro que estava à procura de uma noiva de origem dinástica -- uma princesa. Afinal, não desejava um casamento desigual ou morganático. Sábio, ele sabia que os iguais se atraem melhor. Para tanto, rodou o mundo inteiro em “grand tour” e, após anos de procura, voltou para casa sem ter encontrado sua alma gêmea. Tempos depois, durante uma tempestade noturna, uma moça bateu à porta do castelo real, procurando abrigo. O rei a atendeu e, em seguida à breve conversa interrogatória, perguntou-lhe se ela era uma princesa, dados seu porte e vestes. A resposta da jovem foi positiva. O rei, intrigado, permitiu entrada à suposta princesa e imediatamente concedeu-lhe um quarto confortável.

O rei narrou o acontecimento à rainha. Querendo ter certeza de que se tratava de uma princesa, a rainha habilmente resolveu testá-la: foi até os aposentos destinados à jovem e mandou retirar o colchão e a roupa de cama, colocando sobre o estrado um grão de ervilha. Sobre o grão de ervilha, ordenou que fossem postos vinte colchões; e sobrepostos a todos estes colchões, ainda outras dezenas de peles e cobertores. Foi nesta cama avolumada que a donzela passou a noite. Na manhã seguinte, à mesa do café, a rainha perguntou à então auto-intitulada princesa se ela havia dormido bem. A moça respondeu que não havia conseguido pegar no sono, rolando de um lado para o outro da cama, como se algo pequeno e muito duro a estivesse incomodando; e que, como consequência, estava com o corpo cheio de hematomas. De imediato, a rainha concluiu que ela de fato era uma princesa, vez que apenas alguém com pedigree poderia ter uma tal sensibilidade. O conto termina em casamento, digno do clichê “e viveram felizes para sempre!”

Mas o que esta fábula aparentemente bobinha pode nos ensinar? Pode nos dar lições sobre sensibilidade às questões e às coisas mais sutis e o quanto estas determinam nosso julgamento mais ou menos acurado da vida. Andersen, em linguagem metafórica, está dizendo que existe uma “aristocracia do espírito” que se expressa em poder de discernimento, perspicácia e em experiência conscienciosa do mundo, em melhor compreensão da realidade e em quanto esta precisa ser considerada diante das decisões da existência. O problema do príncipe era um casamento e ele, com ajuda, é claro, conseguiu resolvê-lo através de uma prova de compatibilidade (anote esta palavra!).

Precisamos decidir sobre compatibilidades o tempo todo. A compatibilidade é um crivo que põe à prova nossa sensibilidade justamente ao provar o ajuste da sensibilidade das pessoas com as quais lidamos. A compatibilidade nivela e, como tal, pondera semelhanças e diferenças, sejam elas quais forem. Afinal, é no jogo harmônico das nossas empatias, simpatias, antipatias e apatias que conseguimos estabelecer relacionamentos duradouros, sejam amores, contratos mercantis, amizades, etc. Para tanto, é preciso ser sensível ao “grão de ervilha” e, assim, encontrar quem também o seja. Por detrás do conceito sociológico de “Noblesse oblige” | “Nobreza obriga”, implícito na historieta do escritor dinamarquês, repousa esta grande verdade: o ser humano digno da sua humanidade se obriga a ser, sentir, pensar e agir com sensibilidade, notando todas as possíveis nuances das situações, sensível ao dégradé infinito das “coisas visíveis e invisíveis”, como diria São Paulo. A idéia principal é não se curvar à brutalização, à violência, à agressão, ao entorpecimento das faculdades físicas e mentais -- à barbárie, ainda que aparentemente ínfima como um grão de ervilha amontoado de atenuantes.

Autor

Dayher Giménez
Advogado e Professor