O Espelho Maldito

Quando Narciso nasceu, o oráculo revelou a seus pais que ele teria vida longa, sob a condição de que não se conhecesse. Como corolário desse interdito, o menino estava também impedido de formar vínculos amorosos, pois relações duradouras trazem o risco do autoconhecimento. Assim, ele foi condenado a viver no efêmero e a nunca conhecer o amor. Um dia, no intuito de refrescar-se, Narciso debruça-se sobre uma fonte, e vê, refletida na água, uma figura belíssima pela qual se apaixona, sem saber que se tratava de sua própria imagem. Logo depois, morre de amor.

Atualmente os influenciadores digitais e as celebridades do mundo artístico estão sujeitas a essa mesma maldição. Em um perverso jogo de imagens, eles constroem um personagem do qual ficam prisioneiros, em detrimento de suas próprias crenças e emoções. Essas figuras são tecidas com fantasias daquilo que creem que o público espera delas e essa perda da subjetividade é o mais penoso tributo a pagar pelo sucesso.

Nessa vivência do efêmero, reafirma-se o descartável. O ídolo vive um arremedo de intimidade com o público, com os colegas de trabalho, com os parceiros, consigo próprio. Já não conhece seus contornos reais, contracena sempre com uma reverberação da imagem que ele mesmo ajudou a criar, mas que lhe é devolvida a tal ponto modificada que ele não se reconhece nela.

Durante meses, em doses diárias, esses personagens frequentam a intimidade do público, transformando-o em confidente e parceiro de sonhos. Essa ilusão de proximidade mobiliza processos de identificação e sentimentos de inveja. Ora, o objeto da inveja é sempre um objeto parcial. Quando invejamos alguém, enxergamos apenas o pedaço que reflete o que nos falta como o poder ou a beleza, mas ignoramos o preço pago por esses atributos. Esses veículos colaboram para essa ilusão, pois os sentimentos sombrios não tem o mesmo tratamento que as glórias e alegrias. Mas, por baixo desse manto de falsas verdades e mentiras autênticas, eles estão sem pele, com as vísceras à mostra, à mercê de suas emoções pouco conhecidas ou trabalhadas. No entanto, paira sobre essa dança a maldição dos sapatinhos vermelhos: uma vez experimentados, não se consegue descalçá-los, mesmo que seja fatal acompanhar os compassos frenéticos dessa música diabólica.

Autor

Ivete Marques de Oliveira
Psicóloga clínica, pós-graduada em Terapia Cognitivo Comportamental pela Famerp