O Direito de Reescrever a História

Em uma decisão inédita, a 8ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ/DF) abriu um novo precedente ao permitir que uma mulher retire o sobrenome de seu pai biológico de seu registro de nascimento, fundamentando-se no abandono afetivo sofrido ao longo de sua vida. Este julgamento reflete um reconhecimento profundo da importância dos vínculos afetivos, mais do que dos laços biológicos, para o reconhecimento da identidade familiar.

A autora da ação, que cresceu sob a guarda de sua mãe e seu padrinho – este último posteriormente reconhecido como pai socioafetivo – alegou que seu pai biológico jamais exerceu papel algum em sua educação, sendo ausente tanto na convivência quanto no apoio emocional. Para ela, o abandono afetivo por parte do pai biológico resultou em um vazio emocional que afetou sua formação pessoal e sua autoestima, levando-a a tomar a difícil decisão de buscar a desconstituição da paternidade e a exclusão do sobrenome que, para ela, não mais refletia sua realidade.

O tribunal, ao analisar o pedido, se deparou com a complexidade da questão, que envolve não apenas aspectos jurídicos, mas também psicológicos e afetivos. A decisão reconheceu que, embora o vínculo biológico exista, a ausência de qualquer tipo de convivência e afeto entre a autora e seu pai biológico transformou esse laço em algo meramente formal, sem representatividade para a identidade da requerente.

É importante ressaltar que o pai biológico, ao ser notificado sobre o processo, não contestou a solicitação de sua filha, demonstrando a ausência de qualquer resistência à retirada do sobrenome. Esse gesto, por sua vez, parece corroborar a ideia de que o reconhecimento de um vínculo paternal vai além da simples existência de um registro ou de obrigações alimentícias. A verdadeira paternidade, no entendimento do tribunal, deve ser baseada no afeto, na presença e no cuidado.

Este julgamento, que une direito, emoção e dignidade, levanta importantes reflexões sobre como as relações familiares devem ser tratadas no âmbito jurídico. O fato de a autora ter sido criada por um pai socioafetivo, que assumiu as responsabilidades e o amor que seu pai biológico não proporcionou, aponta para a crescente importância da paternidade socioafetiva, que tem sido reconhecida pelo direito brasileiro, mas que ainda encontra resistência em algumas questões, como a questão da herança ou da desconstituição de paternidade.

A decisão da 8ª Turma Cível do TJ/DF não só coloca em evidência o abandono afetivo como uma questão legalmente relevante, mas também desafia o conceito tradicional de família, afirmando que é o afeto, e não apenas a biologia, que fundamenta as relações familiares. A mudança no nome da autora, portanto, é mais do que uma simples alteração administrativa; é uma forma de restabelecer sua dignidade e sua verdadeira identidade, que reflete seu percurso de vida e os laços genuínos que construiu ao longo do tempo.

Além disso, o caso abre um debate sobre a responsabilidade dos pais em estabelecer e manter vínculos afetivos com seus filhos. O direito de uma pessoa reescrever parte de sua história, retirando de seu registro de nascimento o sobrenome de quem não exerceu o papel de pai, aponta para uma compreensão mais ampla e humanizada das relações familiares, que, muitas vezes, são formadas por vínculos que não se limitam ao sangue, mas se fortalecem pelo carinho, cuidado e presença.

Por fim, a decisão é um marco no reconhecimento do direito das pessoas a uma identidade familiar que se construa com base no afeto e na convivência, elementos essenciais para uma vida plena e respeitosa, onde o ser humano é tratado não apenas como uma parte de um sistema jurídico, mas como um indivíduo com direitos, sentimentos e história.

Autor

Dr.ª Ana Carolina Consoni Chiareto
Advogada especializada em causas trabalhistas, cíveis e previdenciárias