No rastro dos urubus
Há uma longa fila. Prolonga-se até onde a vista não mais alcança. Todos estão ansiosos, à espreita. São urubus. Estão ali para coletar o que os homens descartam ou não protegem. Como costume, seguem o rastro dos humanos.
Não precisam de qualquer esforço. Sempre há lixo de sobra. O entorno também é acolhedor. Num canto, há um sofá velho abandonado, que serve para descanso e, ao mesmo tempo, como mesa farta da imundície.
A podridão se espalha pelo ar. Varejeiras tomam conta do espaço. Tudo perfeito para dar água na boca. Ou no bico.
O cenário sórdido está completo. Quem poderia atrapalhar o banquete está longe. Provavelmente enroscado na burocracia daquilo que os homens chamam de governo – um órgão moroso, que não anda bem e tem mais com o que se preocupar.
O governo não incomoda os urubus. Eles podem se esbaldar despreocupados. Não há risco de despejo, nem fiscalização, tampouco ameaça que lhes tire o sossego e o apetite.
Quando o governo falha, os urubus vão ganhando espaço. E a comunidade colabora: mantém-se alienada e atrai cada vez mais urubus. Até os que sempre voaram por fora passam a dar as caras. Quando há muita coisa podre, fareja-se de longe.
O pior é que o humano, muitas vezes, é um ser acomodado. Nem o lixo na porta de sua casa faz com que ele se rebele. No máximo, reclama ao vizinho igualmente parado, que pouco ou nada faz a mais que o primeiro reclamante.
Se o povo não faz nada além de sujar cada vez mais seu próprio ambiente – e o tal governo lava as mãos nas límpidas águas de seu castelo – o lado podre da sociedade se diverte.
Se o governo não faz nada diferente de se lambuzar com a sujeira que vem de fora ou emerge de seu núcleo, o lado podre do ser humano se esbalda nas sombras.
Impunidade, drogas, crimes, mortes, sujeira e urubus à solta. Tudo vem à tona. As regras perdem valor, a escuridão encobre tudo, a desesperança dá o tom aos dias futuros.
Nesse reinado, no sentido concreto e figurado, têm-se uma máfia que mantém a urubuzada intacta e sedenta por sujeira. Quem conhece ou convive com urubus, sabe bem o quanto eles desejam carne morta. Afinal, tudo que é podre os atrai.
Em meio à festa dos urubus, quem passa por perto teme que aquilo não mude nunca. Que o cenário de desmando se perpetue. Sobram lembranças de outrora e o sonho de que um dia as coisas mudem – ou voltem a ser como antes. Com urubus distantes.
Quanto mais o rastro dos homens atrai os bichos, mais a podridão se instala. Quanto mais o homem se suja, mais sedento pela sujeira ele fica. Quanto mais imerso na imundície o homem está, mais lambe os dedos e segue, em fila, o rastro dos urubus.
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