Ninguém é perfeito
Ninguém é perfeito. Perfeito, semanticamente, é aquilo que está totalmente feito, absolutamente terminado, cabalmente concluído; ou seja, o perfeito é o completo -- o completamente feito. E é evidente que ser humano algum é completo. Somos incompletos. Incompletos porquê não estamos concluídos, terminados e feitos. Todos somos obras em andamento. Cada um de nós é uma construção em diferente estágio de edificação. Uma construção que não será inaugurada durante esta vida... Do início ao fim da existência, seremos faltosos. Algo nos faltará. Algo nos manterá incompletos, nos manterá imperfeitos.
Dito isso, mais precisa ser dito. Isto: exigir perfeição é maluquice ou maldade. Qualquer parâmetro humano que idealize homens e mulheres a tal ponto que não sobre espaço para a debilidade, para a fraqueza, para a contradição e para o pecado, enfim, qualquer padrão que exija que você e eu sejamos anjos seráficos e não mamíferos com alma (divididos pelo instinto e pela razão), é loucura ou malignidade.
Há alguns séculos, as ideologias vêm tentando fazer tábula rasa do espírito humano e formatá-lo segundo as leis, dogmas, usos, costumes e estatutos de pureza moral deste ou daquele “ismo”. Desconsidera-se nossa origem concreta e maculada (tal e qual ela é em ato: vide o “Pecado Original”) em prol de abstrações metafisicamente assépticas. Há uma gama gigantesca de cartilhas morais, das antigas puritanas às novíssimas pós-modernas, querendo engessar a Humanidade em um bloco monolítico de ser/estar. Na ânsia de criar uma sociedade totalizada, perfeita, surgem os mais imperfeitos totalitarismos. Nada desumaniza tanto quanto a busca política do perfeito. Tanto nas relações individuais quanto nas coletivas, há sistemas exigindo as mais cruéis perfeições. E quem não se enquadra é excluído, é cancelado, é censurado, é exilado, é preso, é morto...
O pior: há quem realmente acredite que estamos “evoluindo” ao fingir que melhoramos apenas e tão somente porquê estamos acreditando nesta ou naquela fórmula sócio-política, cultural, econômica, religiosa, etc. Basta crer na idéia “correta” (a idéia que encerra miraculosamente nossa demorada obra individualíssima) para ser perfeito. Vivemos a era do hedonismo ideológico: o sujeito se crê superior apenas por acreditar em uma idéia que ele crê “superior”. Por dentro e por fora ele continua sendo a mesma porcaria vil e pretensiosa, mas no íntimo ele se crê o super-homem nietzschiano tão somente por estar convicto de que sua idéia é a perfeita, aquela que completa tudo e todos. É autoengano. Um baita autoengano! Um perigoso autoengano.
Não, meus amigos. Como escreveu Salomão em 900-e-tantos a.C, “não há nada de novo debaixo do sol.” Portanto, somos os mesmos e imperfeitos filhos de Adão e Eva: antagônicos, sujos, indolentes, manchados, impuros, quebrados, enviesados. Nada mudou em todos estes milênios de civilização. Estamos constantemente em conversações com o diabinho e com o anjinho que se assentam sobre nossos ombros para nos influenciar. Repito: somos imperfeitos! E que bom que somos imperfeitos. Assim, ninguém nos pode controlar, seja um chefe militar que quer extrapolar os limites do quartel, um líder sindical que nunca pegou no pesado, um tiozão mandão que quer fazer comício na mesa do pavê, um patrão que quer impor opinião para além do carimbo na Carteira de Trabalho, um sacerdote adorador do deus-cifrão, um filósofo com complexo de messias, um político megalomaníaco, etc, etc, etc.
Bem-aventurada seja nossa imperfeição! Ela é o penhor da nossa liberdade. Nossa incompletude nos salva do autoritarismo alheio, porquê nada nem ninguém pode terminar a obra que apenas Deus pode começar e terminar em nós.
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