Muito Pasteurizado para ser de Verdade

A psicanálise está desde sua invenção atenta a maneira como o indivíduo se comporta frente as situações onde ele está inserido, dando voz ao sujeito, promovendo uma transformação pessoal afim de facilitar sua convivência com situações difíceis e dolorosas, conduzindo-o ao processo de mudança no alivio de traumas e dores psíquicas.

Nas diversas contribuições que Freud deu a humanidade, ele conseguiu determinar que o inconsciente causa alterações no comportamento humano, e desenvolveu o conceito de psicodinâmica que é um conjunto de fatores de natureza mental e emocional que motivam o comportamento e que aparecem como reação inconsciente aos estímulos ambientais.

Numa sociedade pasteurizada que preserva o ter muito mais do que o ser, a predominância das convenções sociais esbarra num individualismo que não leva em consideração as relações sem interesses, e cultiva vínculos estimulados pela aparência e vida de futilidades que atravessam a linha tênue da saúde mental, adentrando a perversão enquanto forma social e clínica.

No âmbito da patologia, o perverso é aquele que procura estabelecer relações mais íntimas com aqueles que se assemelham ou por quem ele tem inveja ou quer ser igual, sem levar em consideração os sentimentos e necessidades verdadeiras. É um manipulador impulsivo, um sedutor de fala mansa que se sente superior, e suas mentiras e transgressões fazem parte de sua rotina, não havendo nele sentimento de culpa por suas ações. Deseja poder e status, e para alcançar seus objetivos adota práticas duvidosas excluindo e manipulando pessoas para conquistar o que deseja. É aquele indivíduo que enquanto o outros estão dormindo ou desatentos ele está tramando, juntando um número de elementos que ofereça uma outra versão dos fatos através de uma cadeia de moralidade super egóica, justificando suas atitudes no outro para não assumir seu próprio comportamento.

Uma vez tendo decidido seu objetivo, irá trabalhar na surdina, e para justificar porque se comportou de tal maneira dará desculpas para fazer com que as pessoas entendam seu comportamento como algo bom, justificável ou compreensível. E quando tem o reforço familiar ou social, se sente mais encorajado para manipular, excluir, desconsiderar.

Pela falta de castração, age em busca de realização dos seus desejos sem medir consequências, criando um mundo fantasmático que não cabe na vida real, e para manter esta construção, corta pessoas sem o menor pudor, vira as costas, esconde, mente e manipula afim de conseguir seus objetivos.

Trata-se de um quadro psicopatológico sendo necessário tratamento para aprender a se colocar no lugar do outro para entender como o outro se sente e que existem regras para o que se deve ou não fazer com as pessoas e os vínculos construídos, sobretudo porque as pessoas não são moeda de troca ou descartáveis.

Olhar para o outro se colocando em seu lugar nos dá uma medida que pode contribuir para uma sociedade menos pasteurizada e que não exclui ninguém, e no caso do perverso, é preciso identificar qual a posição que o outro ocupa em sua fantasia, assim como sua estratégia de deleite.

A Psicanálise como crítica da cultura nos alerta para o risco dos excessos da perversão, impedindo que o sujeito seja dragado pela força de seus próprios instintos, numa sociedade contemporânea que resiste aos limites da vida real e da saúde mental.

O perverso é aquele indivíduo que joga um véu sobre o objeto de desejo, conseguindo estabelecer um canal único de regozijo sem variantes.

Música: “La Cumparsita” com Geraldo M. Rodriguez e outros.

Autor

Claudia Zogheib
Psicóloga clínica, psicanalista, especialista pela USP, atende presencialmente e online. Redes sociais e sites: @claudiazogheib, @augurihumanamente, @cinemaeartenodivã, www.claudiazogheib.com.br e www.augurihumanamente.com.br | Foto: Renato F. de Araujo @renatorock1 ©