Mentira tem Perna Curta

A mentira é uma parte da verdade que supõe todo um registro de nossa relação com o outro. Na forma como se mente, se revela como se é, e quando a mentira é revelada, torna-se decisiva para revelar em qual lugar nos colocamos tanto no campo público quanto no privado.

Toda mentira acaba sendo revelada, e dependendo de como e porque ela foi construída, a mesma demonstra o tamanho daquilo que escondemos de nós mesmos, assim como em qual lugar nos colocamos diante de nós e nas relações que construímos.

Contar uma mentira de maneira inconsequente determina o tamanho do buraco existencial que uma pessoa pode viver consigo próprio, que enquanto atende aos muros de sua própria mentira, fala de si enquanto sujeito.

O mentiroso sempre dá pistas diante de quem não tem o que esconder, e necessita tirar a mentira do fragmento da fantasia exatamente porque na maioria das vezes a necessidade de mentir encontra-se atrelada a uma condição de relação com algo que não pode ser revelado: traição, plano de fuga, roubo, amante, divisão de bens, convites que excluem, vida dupla, etc.

Em todos os casos, se questionar sobre os reais motivos, determinam em qual lugar nos colocamos em nossa relação com a verdade: por que tenho mesmo que mentir? O que não pode ser revelado? De qual verdade estou fugindo? Qual é plano que sustenta a necessidade de mentir?

O prazer do mentiroso está em colocar o princípio do prazer acima do princípio da realidade, manipulando a verdade para continuar investindo no prazer diante da manipulação da mentira, situação tal que parte dos subterfúgios defensivos que ele utiliza para deformar e fraudar o contato com a realidade.

Na patologia, o mitomaníaco esquece o universo simbólico e incorpora a mentira para dar existência diante do que quer fazer, e quando não pode, mente, cria justificativas para se explicar. Todo mitomaníaco tem um pé na paranoia, comportamento tal que serve como representativo daquilo que ele não quer perceber, o outro. Neste comportamento ele não sente culpa, por isto justifica, se defende numa compulsão contada de forma consciente com o objetivo de falsear sua realidade subjetiva e o que de fato quer fazer, e neste caso, quando não precisa mais mentir por algo, cria outra história para continuar mentindo, exatamente porque mentir está atrelado a uma falta de contato com a verdade e com o princípio do prazer.

O mentiroso é um onipotente com regras próprias que traqueja seu universo particular em busca de contentar seus desejos sem considerar o que está além.

Na contemporaneidade a mentira está cada vez mais comum, num desamparo que não está dando conta de ser revisitado, manuseado na maioria das vezes pelas urgências do fake, do mítico, do rápido e fútil, muitas vezes a serviço do desejo e não da experiência subjetiva que é capaz de nos colocar em contato com os verdadeiros gatilhos da mentira, sentida como necessária pelo sujeito que não quer considerar a castração como algo presente quando considera somente o que quer, sem pensar se de fato pode e deve.

Neste funcionamento, o mentiroso diz: eu menti porque o outro me controla, me castra, não participa comigo do que eu gosto, é ciumento, não me deixa livre, etc., enfim, sempre na borda de algo, mentindo... e se revelando.

As pessoas não conseguem mentir, aquilo que elas escondem com a boca, o tamborilar de seus dedos denunciam.

 

Música, “Rapte-me, Camaleoa”, com Caetano Veloso, Maria Gadú.

Autor

Claudia Zogheib
Psicóloga clínica, psicanalista, especialista pela USP, atende presencialmente e online. Redes sociais e sites: @claudiazogheib, @augurihumanamente, @cinemaeartenodivã, www.claudiazogheib.com.br e www.augurihumanamente.com.br | Foto: Renato F. de Araujo @renatorock1 ©