'Meninos, eu vi!'

À memória de Odete Braize Pereira

Já dizia o Mestre dos mestres: “Portanto, aquele que se humilhar como esta criança, esse é o maior”. O discurso infantil é veiculado em diferentes performances: nas músicas, fotos, quadros e vídeos familiares, enquanto essência da vida. Curiosamente, na infância, desenvolve-se o Complexo de Édipo, como fase do desenvolvimento psicossexual. O rito edípico prossegue, ao longo da vida, pela necessidade de buscarmos o (des)conhecido dentro de nós, o contínuo “nascer de novo”. Um exemplo da projeção pueril verifica-se em algumas canções de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (Gonzaguinha). O cantor brasileiro, que, em 2025, completaria 80 anos, utilizou o símbolo do “menino” atuante na vida adulta.

Na Canção “Tá certo, doutor” (1975), Gonzaguinha tipificou um menino diagnosticado com meningite, ao conotar o processo de desmemorialização (mudança de pensamento) e discutindo o conflito nas relações humanas. Trata-se de reminiscências, nas quais as perdas históricas e as incompletudes oníricas perfazem o sujeito em pleno desenvolvimento. A internação do menino, aqui, ocorre, a fim de realizar um apagamento ideológico do ser.  Alusão à tentativa de Jocasta, quando coloca Édipo fora do cesto. José, o hebreu, ganha a identidade sendo vendido ao Egito. Moisés, adotado pela filha de Faraó, descobre ser hebreu.

Em “De volta ao começo” (1980), Gonzaguinha consagrou, por excelência, a mudança identitária, à luz do efeito edípico. O término é o encontro com as origens – o fim, o começo da história. A figura do “menino” ganha notoriedade, a partir da expressão “a menina dos olhos”, uma regeneração profética. A sina surge como maneira de garantir a efetividade do programa cristão: nascimento, vida, morte e ressurreição. Édipo (re)nasceu em Tebas; Nicodemos, pelas águas; João, ao redigir o Apocalipse; etc. Renascimento propõe a essência ritualística, pois a jornada da vida persegue a (re)criação.

Gonzaguinha enalteceu o futuro nas letras da música “Nunca pare de sonhar” (1984), ou seja, a visão infantil está além do tempo adultocêntrico e a “semente do amanhã” é semeada por meio de ludicidades – o jogo da vida, o brinquedo corporal e a brincadeira da alma. Assim, a disseminação cronotópica expõe: o ontem (vaticínio), o hoje (semente) e o amanhã (germinação). Édipo se tornou rei, e o menino, ao acordar, presenciou um pé de feijão, pelo qual adquiriu tesouros.

Que libertemos os meninos existentes em nós e, em seguida, realizemos contação de histórias. Conforme Gonçalves Dias (1851): “Guardava a memória do moço guerreiro (...). E à noite nas tabas, se alguém duvidava do que ele contava, tornava prudente: ‘Meninos, eu vi!’ ”.

 

Foto: Cantor Gonzaguinha – Capa do LP Grávido (1984)

Na foto, Gonzaguinha beija sua filha, Mariana.

Autor

Prof. Dr. John David Peliceri da Silva
Formado em Letras, em Direito e Pedagogia. Mestre, Doutor e Pós-doutorando em Letras pela Unesp. Atua como Supervisor Educacional na Secretaria Municipal de Educação de Catanduva.