Menina Monossilábica
Quem estava na outra ponta do diálogo tinha que rebolar para manter a conectividade. A função fática prevalecia, jamais a denotativa ou a expressiva, a la Macabéa, de Clarice, como se deixasse as coisas acontecerem, numa passividade absurda.
Mas ela era um pouco mais do que isso: a verdade é que direcionava sua energia para avaliar ação e reação, forma e conteúdo, razão e circunstância. Preferir pensar a falar.
Em meio às mazelas em que vivia, queria desconstruir tudo e exibir à sociedade as vísceras de um sistema desigual, falido e corrupto, que só traz desesperança.
Na mente da Menina Monossilábica, apesar das poucas palavras, eram os outros que se deixavam levar pela sorte sem analisar por que tudo é do jeito que é. Pareciam driblar as dificuldades da vida sem, contudo, questioná-las.
Já ela avaliava tudo minuciosamente, buscava entender a origem das coisas, a sequência dos fatos, o resultado às vezes ingrato.
Traçava mentalmente formas para mudar sua realidade e a vida dos seus, dar cores à favela opaca. E assim fazia a sua parte. Enquanto os outros falavam, agia.
Queria deixar de lado aquele existir automático, em meio a ônibus lotados, escravidão operária, pouco dinheiro no bolso, família faminta em casa e crianças sem presente no Natal. Mas não só ela. Queria levar todos consigo.
A vontade que alimentava era a de mostrar ao mundo que aquela comunidade existia e vibrava. Que o povo sabia criar, inovar. Que dali poderiam surgir artistas e pensadores.
Olhava perspicaz para todo o entorno. Via a sujeira, os casebres e a podridão. Sonhava mudar. Não dali, mas tudo ali. Monossilábica, quase não falava. Mas traçava estratégias.
Precisava provar que ali viviam trabalhadores e pais de famílias, não escudos para o tráfico, rejeitados e desalmados, marginais e vagabundos. Havia pessoas que buscavam seu lugar ao sol. Quiçá dali surgiriam Ubaldos, Alves e Suassunas.
Com o passar dos dias, sempre com poucas palavras, esperava a chance para expor conclusão e indignação. “Querem tapar o sol com a peneira. Querem calar a nossa maneira. Morre a juventude à luz do dia. Já não dorme a periferia”.
Um dia, a Menina Monossilábica – tinha fé – descobriria o mistério do existir. Numa entrevista na tevê deixou de lado a fala contida e desfilou conceitos, teses e dramas, clamou ajuda, choro irrefreado em frente às câmeras. Sua hora da estrela.
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