Jolie, Pipoca e o poodle anônimo

Jolie, minha cachorrinha, está morrendo. Há duas semanas descobrimos que ela está com câncer terminal. Longeva, tem 17 anos completos. Como todo ser vivo, ela teve seu começo, seu meio e em breve terá seu fim. Recordo-me bem do dia em que ela chegou (então, era eu quem tinha 17 anos: hoje, tenho 34): era uma bolinha de pêlo castanho, com aquele cheirinho característico de leite mamífero. Miudinha e brincalhona. Sua vida tem sido muito feliz: sempre dormiu dentro de casa, ao lado da cama dos meus pais; tem comido do bom e do melhor próprio à sua espécie; teve poucas enfermidades e quando delas padeceu foi muito bem tratada por excelentes veterinários; nunca jamais foi maltratada. Está viva. Não sei até quando...

Pipoca, meu cachorro, morreu. Em agosto do ano passado, começou a ficar estático. Uma doença rara, autoimune, que o deixou absolutamente inativo e em pouco tempo começou a paralisar cada um dos seus órgãos. Era molecão: 5 anos, apenas. Minha mãe o encontrou filhote, passando fome, sede e frio no inverno de 2018, escondido nos fundos da estação ferroviária abandonada, aqui de Pindorama. Desde então, nada lhe faltou. Tomou todas as vacinas, foi castrado, fez mais exames que a maioria das pessoas do planeta. Era saudável e feliz. Saia para passear, ganhava diariamente seus ossinhos, jogava (e furava) bola, gostava de nadar, corria alucinado. Para não sofrer além da conta, a eutanásia foi a melhor opção. Choramos e o enterramos..

Semana passada, salvo engano na terça-feira, perto da Vila Nem, um poodle pequeno transitava perdido, muito confuso, de um lado para o outro da vicinal. Provavelmente, havia acabado de ser expulso de algum carro pelo dono (isto acontece frequentemente por ali, por ser perto de um bairro onde, na cabeça do criminoso ignorante da vez -- que por isto se supõe muito “humano” --, o bichinho mais facilmente pode encontrar novo lar). A maioria dos motoristas, porquê prestava atenção à pista, diminuiu a velocidade. Mas... uma Saveiro branca, que estava acima do limite de 40km/h para aquele trecho, não diminuiu, não percebeu a presença do poodle (quero crer que não percebeu) e o atropelou. O cãozinho foi lançado para o outro lado da pista. Agonizou e morreu minutos depois. O condutor percebeu o atropelamento porquê olhou para trás e acenou desdenhoso com a mão, seguindo viagem. Pelo porte, o poodle anônimo não devia ter mais do que 1 ano de idade. Como todo anônimo, desconhece-lhe o começo e o meio da existência; quanto ao seu fim, pelo menos uma dezena de pessoas testemunhou.

Três vidas. Três vidas de cão. Três vidas muito parecidas com as narrativas da nossa por vezes “canina” vida humana, não? Resta um fato: Jolie e Pipoca não foram “humanizados” -- eram animais queridamente tratados como animais. Eles me humanizaram. Eu fui modificado, beneficamente modificado. Minha consciência ganhou contornos muito mais refinados e sensíveis quanto ao trato com a vida em geral. Quanto ao poodle desconhecido, ele também acrescentou mais humanidade à minha animalidade; ele me fez repensar o pensamento de Salomão: “Quem pode dizer se o fôlego do homem sobe às alturas e se o fôlego do animal desce para a terra?” (Eclesiastes 3:21)

Talvez Milan Kundera tenha razão: “Os cães são o nosso elo com o paraíso. Eles não conhecem a maldade, a inveja ou o descontentamento. Sentar-se com um cão ao pé de uma colina numa linda tarde é voltar ao Éden, onde ficar sem fazer nada não era tédio, era paz.”

Autor

Dayher Giménez
Advogado e Professor