Heroísmo sufocado

Os heróis andam sumidos. Andam sumidos porque o heroísmo anda sumido; pelo menos o heroísmo tornado público -- aquele heroísmo dantes celebrado pelo povo e conscientemente adotado pelo herói como “destino auto-imposto”. Já não se vêem estátuas sendo erigidas, monumentos sendo inaugurados, placas de prata sendo gravadas, medalhas sendo benzidas, marchas sendo compostas, paradas rompendo as avenidas em dupla celebração: louros ao honrado e à honra. O herói se perdeu na noite dos novos tempos. O cavaleiro andante tem três empregos, o soldado destemido é burocrata bate-carimbo, o monge-cruzado cochila tristemente no confessionário da igreja vazia...

E este herói natimorto anda depressivo. A “inquietude blasé” de não poucos homens deriva justamente disso: o herói latente não consegue, nos termos em que o Mundo Moderno está organizado, encontrar o espaço vital necessário para dar vazão às proezas que jazem no espírito. A Modernidade sufoca o herói, impede a saga, silencia a ode. O sentido da vida, diluído na rotina, castra as poesias, as glórias, os impérios. Como Dante, o homem tem chegado “nel mezzo del cammin di nostra vita”, encontrando-se numa selva escura perdido da reta estrada, mas... acaba perpetuamente retido no limbo da inatividade. Sem inferno, sem purgatório, sem paraíso. Tudo é vácuo. Tudo é medíocre e incerto.

Como toda revolução precisa substituir as estruturas psicoemocionais e os modelos sociais e culturais que sustentavam o estado anterior de coisas para se afirmar e definitivamente se enraizar no “ser coletivo”, a Modernidade substituiu o verdadeiro heroísmo pelo falso heroísmo -- logo, substituiu o verdadeiro herói pelo falso herói. No Brasil, sazonal nacionalismo futebolístico triunfou sobre o permanente patriotismo do dia-a-dia; o homem bom sumiu, cedendo o pódio moral ao sujeito “do bem”; as galinhas e os galinhas do BBB são os novos heróis, ungidos pela tola literatura de Pedro Bial ou de sei lá quem o substituiu. Que tipo de poesia épica poder-se-ia escrever à partir destes tão insólitos exemplos? O bom Homero sairia do cochilo para, inconsolável, chorar. E elevado ao panteão da pátria, Homer Simpson gargalharia entre seus ímpios lauréis.

Isso não quer dizer que o heroísmo autêntico não mais ocorra e que a terra esteja estéril e integralmente despovoada destes exemplos magnos de suprema humanidade. Ocorre. Mas ocorre diluído num “dever profissional” que freqüentemente o impede de ser reconhecido como abnegado altruísmo até mesmo por aqueles que o praticam. Bombeiros diariamente salvam pessoas das chamas da morte, policiais a todo instante estouram cativeiros de crianças seqüestradas, enfim, homens salvam homens. Contudo, ao cabo do dia, vão todos dormir, dormir para esquecer. Dormem os homens que fugazmente aplaudiram, dormem os fugazes heróis aplaudidos. Dormem e acordam igualitariamente nivelados a qualquer delinqüente de esquina. O heroísmo verdadeiro tem sido um instante e o herói um mero agente casual.

Autor

Dayher Giménez
Advogado e Professor