Guaraná aos domingos

Na década de cinquenta até sessenta, seguramente o sonho de todo menino pobre era ter uma bola de capotão da Drible (como era conhecida a bola de futebol em gomos de couro e que ficou consagrada com o milésimo gol de Pelé). Depois da bola, outros sonhos compreendiam o relógio, a bicicleta e o de tomar um guaraná caçulinha. De todos esses desejos, o mais fácil de ser realizado certamente era o guaraná, contudo, nas famílias pobres, a condição financeira permitia fosse apenas consumido aos domingos, junto com o tradicional almoço de macarronada com frango caipira e, é claro, também nas festas de final de ano. O charme era furar a tampinha de chapa de lata colorida do caçulinha com a ponta de uma faca (que risco de doenças!) e se deliciar com o precioso refri. Refrigerantes mais caros como Coca-Cola, Crush, Mirinda, Grapette, Guaraná Paulista ou Antarctica eram privilégio dos mais abastados. Cada cidade praticamente tinha uma ou mais fábricas de guaraná e soda que eram os únicos produtos mais populares. Só muito tempo depois, na década de setenta, passaram a fabricar os refrigerantes sabor cola e laranja e, tal como hoje, eram pouco aceitos. Em Catanduva, além da fábrica Devito, que existe até hoje, tinha a fábrica de refrigerantes Nechar, do Pedro Nechar que, sucedida pelos irmãos Bauab (Jamil e Anísio), no final da década de sessenta, passou a chamar-se refrigerantes Recreio. Aqui aportavam ainda os produtos da marca Ferrari e Pic-nic, ambas de Potirendaba e também os da marca Brasil (muito consumidos na cidade), que eram produzidos pela família Bertoli, em Santa Adélia, cuja fábrica foi desativada não faz muito tempo. Os fabricantes Nechar e Devito, representavam respectivamente as cervejas Brahma e Skol, enquanto que a cerveja Antarctica, a mais preferida no Brasil, porém, superada pela Brahma na cidade, era distribuída pelos irmãos Soubhia e Merighi, que não fabricavam refrigerantes. A concorrência das cervejas limitava-se às três marcas que, passado meio século, ainda continuam a dominar o mercado. No segmento de refrigerantes, a briga era muito maior, lembrando que o consumo era limitado principalmente na classe mais pobre, pois além das cinco marcas regionais (Devito, Nechar/Recreio, Brasil, Ferrari e Pic-nic), o consumidor de maior poder aquisitivo poderia escolher entre os produtos fabricados pelas próprias cervejarias, além da Coca-Cola/Fanta, Pepsi/Mirinda e Crush. O falecido ex-prefeito e empresário Pedro Nechar sempre lembrava com saudade que, aos sábados a criançada fazia fila na porta da sua fábrica para receber produtos que não tinham passado pelo controle de qualidade, tipo: com cisco, pouco gás ou envasamento insuficiente. Para receber o produto descartado era só levar vasilhame. Era a oportunidade de poder consumir o refrigerante sem pagar nada e sem precisar esperar chegar o almoço de domingo. Essa mesma história, com outra formatação, se repetia na vizinha Santa Adélia, mais precisamente com a garotada do Ginásio Estadual e Escola Normal, que ficava nas proximidades da fábrica do guaraná Brasil. Após a aula de educação física e das peladas de futebol coordenadas pelo professor Ivo Dall´Aglio, os alunos buscavam na fábrica o guaraná recusado pelo controle de qualidade que era feito manualmente, mas bastante rigoroso e eficiente. Na verdade, esse controle consistia numa estrutura cilíndrica metálica onde as garrafas passavam uma a uma sob uma luz intensa para verificar possíveis irregularidades no conteúdo, sendo que as garrafas que não atendiam o padrão da fábrica eram prontamente descartadas, porém, não impróprias para o consumo. Ainda com as camisetas obrigatórias da aula de educação física, molhadas de suor após os embates futebolísticos, muitos alunos corriam imediatamente para a fábrica e, por um preço irrisório ou até mesmo sem custo algum, abriam as garrafas e, envolvendo o gargalo da garrafa com a mesma camiseta dobrada para servir de filtro, tomavam de um só gole o conteúdo do refrigerante. Foi-se o tempo do guaraná somente aos domingos. Hoje qualquer criança tem acesso a todo tipo de refrigerante e, isso talvez explica o porquê atualmente do grande número de crianças com obesidade, fato que era raro no tempo do guaraná somente aos domingos. O guaraná é o mesmo, mas para as crianças daquela época o refrigerante tinha outro sabor – o da inocência e responsabilidade da obrigação escolar; da alegria das peladas no campinho de terra; das brincadeiras de salva pega; do divertimento de nadar e pescar nos riachos e, da oportunidade de ganhar um tão sonhado presente no Natal. P.S. Este artigo, à época em que foi escrito (maio de 2012), teve a colaboração do engenheiro Edison Thadeu Guerzoni – etguerzoni@uol.com.br.

Autor

José Carlos Buch
É advogado e articulista de O Regional.