Fatos e conjeturas

 

Os fatos não são conhecidos. Mas as conjeturas são razoáveis.  

Numa tarde de outono, um homem simples, sensato, de estatura mediana, magro, chapéu de palha, rosto marcado pelo tempo, semblante sério, jeitão de idealista, simpático —— diferente, um pouco diferente, mas diferente —apeou de seu cavalo e, em ato à prova de erro, com o coração batendo com a fúria de um bate-estacas, disse com calma solene, para os que lhe faziam companhia: 

—— Sob o signo da solidariedade e do amor, aqui, às margens deste riacho, vai nascer uma cidade. Vai ser a minha cidade. A nossa cidade. Por enquanto, será apenas   povoado. Não demorará e ela terá sua emancipação política. Transformar-se-á num município. Seu nome? Quem sabe? E o que importa?  A rosa teria outro perfume se não se chamasse rosa?  O nome não fará diferença! Cerradinho? Vila Adolfo? Catanduva? 

—— Certo, Minguta, certo...  

O homem não deu espaço para ponderações paralelas. Não abriu mão da palavra. Ele não queria ouvir. Queria falar. Queria dizer. E, assim, falou, demonstrando sentimento próximo da veneração:  

—— Nossa cidade poderá ser ultrapassada em tamanho e pujança por outras —— ainda que nascidas depois ——, candidatas a metrópoles. Isso não importa. Pode ser que, alojada no mapa do Estado, não se possa escrever seu nome sobre ela, sem que suas letras ultrapassem seus próprios limites. Mas será uma cidade com fronteiras sem limites.  Ah! Isso será! 

Fez uma pausa. Fechou os olhos. Anteviu a cena.  E acrescentou:  

—— Aqui os humanos serão profissionais e os profissionais serão humanos.  Poderemos produzir menos do que viermos a consumir, mas aqui ninguém morrerá de fome ou em solidão. Aqui não esperaremos milagres, mas, quando eles ocorrerem, nós os levaremos em consideração. Seu ar poderá, de quando em vez, até vir a ser poluído, mas aqui se respirará liberdade.  

Nessa declaração, havia bemóis e sustenidos à vontade. O homem fez questão de frisar   que —— embora a cidade possa um dia ser vítima de finórios —— ela haverá de comemorar setenta, oitenta, cem, mil anos! Mas nela haverá, desde logo, sabedoria e experiência de mais de vinte séculos! 

—— Aqui será, enfim, um bom lugar para se viver e criar nossos filhos. Em paz. Em harmonia. Com tranqüilidade. Com prosperidade.  

Suas palavras espalharam-se no tempo e no espaço. Pareciam refletir mais o entusiasmo que a realidade que estava por vir. 

Catanduva não decepcionou a expectativa pessoal do homem que lançou a semente que deu à luz nossa Catanduva, Domingos Borges da Costa —— retratado em simpática peça de escultura na José Nélson Machado —— tão arguto em suas observações, embora, às vezes, seja privado do reconhecimento a que tem direito.  Não faz diferença. Em alma grande, tudo é grande.  

O fato é que, hoje, nossa cidade é o céu, a terra, o povo, a tradição, a consciência, o lar,  o berço de todos nós, a sepultura de nossos  antepassados, o berço de nossos filhos.  

Catanduva... 

Nossa Catanduva!  

 

Autor

Marcílio Dias
É advogado e articulista de O Regional.