Especial 48ª Mostra de Cinema de SP

A 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo segue na capital paulista até 30 de outubro. Nesse ano, serão exibidos 419 títulos de 82 países, distribuídos em mais de 20 salas de cinema de São Paulo. A programação completa da Mostra está no site oficial, em https://48.mostra.org/. Confira abaixo drops de mais filmes da Mostra que assisti e recomendo

Tudo que imaginamos como luz

A Mostra de SP desse ano tem a Índia como foco em sua programação. São diversos longas, lançamentos e clássicos restaurados, que integram a seleção de 2024. Vencedor do grande prêmio do júri no Festival de Cannes, o drama indiano ‘Tudo que imaginamos como luz’ é um dos melhores títulos da 48ª Mostra e em breve será lançado nos cinemas. A história se passa em Mumbai, de uma enfermeira dedicada que tem uma rotina difícil, em que se apega ao trabalho para esquecer do passado. Um dia recebe um presente do ex-marido que a deixa desnorteada, e ao mesmo tempo tenta ajudar uma amiga na relação distante com o namorado. Filmado com maestria pela cineasta Payal Kapadia, de ‘Uma noite sem saber nada’ (2021) – que é a roteirista também, o filme toca em temas sociais e reflete o papel das mulheres na sociedade indiana, seus anseios e desejos, bem como a relação delas no mercado de trabalho – na figura da enfermeira que lida com diversos problemas, seja no âmbito profissional quanto nos particulares (aliás, uma grande atuação da atriz Kani Kusruti). Filme premiado também em San Sebastián e ainda exibido nos festivais de Sydney, Denver, Chicago, Munique e Jerusalém.

O banho do diabo

Novo trabalho da dupla austríaca Severin Fiala e Veronika Franz, que trouxeram nova visão ao cinema de terror com o perturbador ‘Boa noite, mamãe’ (2014), e depois fizeram ‘O chalé’ (2019). Agora, a coprodução Áustria/Alemanha, é um angustiante folk horror cuja história, com pano de fundo real, se passa no século XVIII. Num vilarejo austríaco cercado por árvores, uma mulher mata um bebê e é condenada à morte. Dias depois, uma jovem prestes a se casar descobre o corpo em exposição da mulher morta por ter assassinado a criança. Ela é tomada por um estranho sentimento e passa a ter pesadelos e atitudes violentas, que a levará a cometer um crime brutal. Obscuro, com cenas cruéis que chegam ao limite, é um filme denso e de terror psicológico com um final igualmente violento, como nos finais marcantes dos filmes anteriores da dupla. A fotografia no vilarejo medieval perdido no meio da floresta dá todo o clima de tensão que a obra exige. Venceu prêmio de melhor contribuição artística no Festival de Berlim e é o representante da Áustria para disputar uma vaga ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2025.

Ernest Cole: Achados e perdidos

Deve ser o finalista ao Oscar de documentário no ano que vem esse ótimo novo trabalho do cineasta haitiano Raoul Peck, que aqui trata com seu olhar peculiar o apartheid para além da África. O filme, que recebeu com méritos o prêmio de melhor doc no Festival de Cannes, resgata a trajetória do fotógrafo sul-africano Ernest Cole (1940-1990), que registrou o terror do apartheid dentro e fora da África do Sul. Cole viveu no exílio praticamente a vida inteira, nos Estados Unidos e na Europa, morrendo cedo, aos 49 anos. Suas fotografias – e o filme é um desfile de dezenas delas, analisadas por Peck, mostram a terrível segregação racial no país de Mandela, os desdobramentos após o fim do regime do apartheid e as perseguições aos negros em países como os EUA, fazendo um paralelo entre a África e a América. O filme centraliza as discussões em torno do livro de Cole publicado em 1967 e fundamental para a questão negra, ‘House of bondage’, e da descoberta de 60 mil negativos do fotógrafo em 2017 num banco da Suécia. A narração é do ator indicado ao Oscar Lakeith Stanfield, e o filme teve os direitos adquiridos pela Netflix. O cineasta Raoul Peck, já indicado ao Oscar, pelo documentário ‘Eu não sou seu negro’ (2016), receberá o Prêmio Humanidade da 48ª Mostra, concedido a personalidades que atuam com questões humanistas.

Oito cartões-postais da utopia

Radu Jude, o diretor romeno de ‘Má sorte no sexo – Ou pornô acidental’ (2021), vencedor do Urso de Ouro em Berlim, e ‘Não espere muito do fim do mundo’ (2023), prova que é um dos cineastas mais originais, ousados e disruptivos de seu país – que, aliás, tem uma forte presença no cinema atual, com longas disputando e vencendo prêmios no mundo todo. Agora, ao lado do jovem filósofo Christian Ferencz-Flatz, realiza um documentário com centenas de propagandas antigas, realizadas no período de transição pós-socialista da Romênia, entre os anos 90 e 2000. Os diretores cortaram trechos dessas diversas peças publicitárias televisivas e as reuniram em oito capítulos que tratam de assuntos como consumismo, gênero, amor, velhice, questões do corpo e, como não poderia faltar nas obras de Jude, uma crítica severa ao capitalismo. Engraçado e provocador, o filme é uma inteligente sacada sobre o poder da publicidade e como ela vende padrões. E mesmo com apenas a reunião de anúncios de TV, Jude consegue tecer fortes comentários sobre sua Romênia, que desde o fim do socialismo sofre intermináveis transformações políticas e sociais. Exibido no Festival de Locarno.

I saw the TV glow

Está na Mostra, sem título em português, esse curioso, e bem melancólico, drama com terror psicológico sobre um adolescente do subúrbio que é apresentado por uma nova amiga a um estranho programa televisivo noturno. Os dois ficam fissurados vendo ‘Pink Opaque’ até altas horas da madrugada. O programa, que traz uma figura sobrenatural lidando com problemas cotidianos, numa espécie de super-herói às avessas, muda radicalmente a visão de mundo daqueles dois jovens, impactando também as relações em casa e na escola. Não espere um filme de medo, monstros ou sangue, é mais um drama pessoal com ares de terror, de dois adolescentes tristes que compartilham a mesma experiência, na frente da TV, e como a realidade deles é alterada a partir do brilho do televisor – em inglês o título seria ‘Eu vi o brilho da TV’. Os dois são interpretados pelos bons Justice Smith, de ‘Observadores’ (2021), e Brigitte Lundy-Paine, da série ‘Atypical’. A produção EUA/Reino Unido é da queridinha A24. Exibido nos festivais de Sundance, Berlim e San Sebastián.

Autor

Felipe Brida
Jornalista e Crítico de Cinema. Professor de Comunicação e Artes no Imes, Fatec e Senac Catanduva