Entre Mulheres
O longa de Sarah Polley que ganhou o prêmio de melhor roteiro adaptado no Oscar 2023 é centrado em mulheres falando, e aparenta uma simplicidade que esconde uma história intimista que aos poucos revela seu trágico escopo, carregado pela potência de seus diálogos riquíssimos que combinam com a escolha do tema e do elenco, numa tonalidade de câmera que traz à tona um sofrimento escondido.
Baseado no livro homônimo de Miriam Toews, o filme foi inspirado em eventos reais ocorridos na colônia de Manitoba na Bolívia, e acompanha um grupo de mulheres que vivem uma vida simples, trabalhando na agricultura, separadas dos homens na escola que frequentam, e que praticam uma religião que encontram suas raízes na Alemanha e Holanda do século 16.
O local foi alvo de crimes sexuais cometidos pelos homens da própria comunidade, e a partir de então as mulheres formaram um plebiscito para escolher se deixavam suas casas e partiam, ou ficavam e lutavam para tornar o lugar mais seguro, uma opção não muito fácil visto que quase todos os homens do local se dispuseram a pagar fiança dos criminosos e deram às suas esposas, mães, irmãs e filhas um ultimato: ou elas perdoavam os agressores, ou teriam que arriscar condenação às penas do inferno e decadência eterna.
A partir de então, representantes de três famílias são escolhidas para debater o assunto onde as matriarcas seguem conversas francas e inspiradoras que navegam entre a fé que é tão cara a elas, e o desejo quase impossível por uma vida melhor, de mais respeito e liberdade.
O filme começa com a seguinte frase, “Esta história é fruto da imaginação fértil feminina”, ou seja, quase uma permissão contra os agressores e seus cúmplices, que atribuem os ataques a uma suposta “histeria feminina”, assim como uma descrição precisa do que se passa quando mulheres conversam.
Sonhar é o pouco que resta a elas, despidas de qualquer poder e voz sobre suas vidas e que em meio a tanto horror começam de fato a colocar seus sonhos em prática, tentando construir o futuro que imaginam para si e seus descendentes, longe das restrições e violência que por tanto tempo lhes foram impostas e lhes atormentaram.
Para além da dor que paira no ar, e suas indagações sobre a natureza da fé, a conversa é intervalada por emoções muito tangíveis: ternura, raiva, tristeza, risadas, dor, que se misturam ao longo do filme nos apresentando um pouco mais delas e de suas histórias, da personalidade de cada uma daquele lugar e de muitas anônimas que estão espalhadas pelo mundo, criando uma cumplicidade entre todos que lutam por mais dignidade e pelo direito de poderem escolher e serem respeitadas.
No contexto do filme, Polley confere individualidade às sobreviventes da violência e em cada uma das personagens que sofreram algo inimaginável, e que expressam seus traumas da forma como aconteceu na vida real, com as dores e os mesmos sentimentos nos quais o cinismo, a fúria e os ataques de pânico foram reações individuais, construídas com sensibilidade pela cineasta e por seu elenco espetacular.
E é neste entrelaçamento de detalhes, do roteiro e com o cuidado das interpretações que o filme se mostra um exercício poderoso e comovente de realidade.
Entre Mulheres transcende as paredes do celeiro onde se passa a maior parte do filme, e se mostra universal nas decisões que suas personagens precisam tomar sobre suas vidas, e que encontram eco em todo lugar, não importando que seja na zona rural ou em grandes centros urbanos: onde há mulheres deverão haver pessoas que lutem por sua individualidade e respeito.
As vítimas de crimes sexuais devem ter voz através delas e de todos que estão ao seu redor e que não compactuam com aberrações deste tipo.
Trata-se de um filme fundamental para conhecermos o sofrimento de tantas anônimas que estão naquele lugar e pelo mundo, vítimas de tantas formas de violência.
E como uma das mulheres do filme diz: “Como você se sentiria se ao longo de sua vida sua opinião não tivesse importância? Quando nos libertarmos, teremos que perguntar a nós mesmo quem somos!
Este texto foi escrito ao som das músicas “Sanfona” de Egberto Gismonti.
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