Entra de cabeça!

“Eu não me arrastaria pelo litoral, mas remaria mar adentro, seguindo as estrelas.”

George Elliot

Pseudônimo da romancista britânica Mary Ann Evans (1819-1880)

 

Seis da manhã e as conversas no grupo de whatsapp já estavam aceleradas, ansiosas. Havia um motivo, um especial motivo: apresentação teatral de nossas alunas na Festa Literária do Colégio Agostiniano São José, em Rio Preto. As apresentações estavam agendadas a partir das primeiras aulas da manhã e havia muito o que se fazer: maquiagem, figurinos, cabelo etc. Mais que isso: trabalhar a ansiedade, o nervosismo, a angústia dos minutos que precedem a encenação, encarar o curioso público de adolescentes, colegas de classe, e isso não é fácil. Muitos adultos não têm ideia do que é se apresentar num palco para os conhecidos que compartilham todos os dias do ano, nas salas de aula, além dos professores. E não se limita a essas questões, há outras mais complexas, mesmo porque muitos jovens procuram as aulas de teatro não apenas pela veia artística ou pelo sonho de vida de fama e sucesso, mas porque há uma necessidade – na grande maioria – de um processo de autoconhecimento, trabalhar emoções e sensações, aprender a dividir o espaço, angústias, vergonha e ideias com outros adolescentes, vencendo a timidez e as próprios entraves. Quando se descobrem capazes de superar tudo isso e ainda transcender os conceitos de limitação, não há mais o que os impeça de adentrarem o mar imenso e se auto iluminarem!

Testemunhar tudo isso, in loco, observando as descobertas e crescimentos individuais e do conjunto é emocionante! Fazer parte desse processo é ainda mais gratificante porque temos ali adolescentes que nunca subiram num palco, têm dificuldade de se expor em público, dúvidas imensas da própria capacidade de superação e enfrentamento do desafio.

E lá estavam, todas elas, mal acordadas pelo horário das apresentações e mal dormidas pela ansiedade da véspera, emocionando os colegas, os professores, os coordenadores e nós mesmos, embora muito acostumados com essa experiência ao longo de décadas, porém sempre nos surpreendemos.

O que fica para reflexão, sempre, é a possibilidade de ir tão fundo num processo no ambiente escolar e, logicamente, na abertura que a instituição educacional abre para que se possa ir além do teatrinho de final de ano para algo muito maior: a possibilidade concreta de remar, adentrar o mar, mergulhar nas águas mais límpidas da alma humana, da aventura criativa, emocional, estética e compartilhar ao vivo, olhos nos olhos, coração a coração, com seres vivos, não mecanizados, mas envolvidos, ávidos de cor, movimento e vida! Os olhos dos colegas, na plateia, brilham, se encantam, alunos se pegam sorrindo, pensando e sorrindo... Não é permitido fotografar ou filmar. É o momento! É tão fugaz que merece ser visto pelo olhar e não através de lentes. Nós registramos, ao longe, esse momento, porque depois as alunas precisarão se ver, confirmarem que aquele momento mágico realmente aconteceu porque tudo passa tão rápido, tão intenso... tão pleno!

Conversando com a coordenadora pedagógica da turma, ela nos confessou que disse a uma aluna que as aulas de teatro seriam muito importantes para ela, levando-se em conta que a menina estava passando por momentos pessoais muito delicados e de difícil assimilação. A professora então lhe disse: entra de cabeça! Você não vai se arrepender... Após algumas aulas, a tímida aluna estava no palco, diante de centenas de pessoas, plena, feliz... ela conseguiu!

Nossos dias pedem por aventuras assim.

O teatro, a arte, a cultura em geral nos proporcionam algo que vai muito além do fracasso, do medo. Expressar-se artisticamente é a possibilidade de ser você mesmo, falar de seus sonhos e identidade, dividir, compartilhar com o outro o seu melhor, os seus medos, suas buscas.

Há mães, pais, familiares, adultos e infelizmente alguns educadores que transferem suas próprias frustrações aos filhos e/ou alunos, questionando inadvertidamente a espontaneidade, os sonhos e os desejos deles. Preferem ficar apenas caminhando, se arrastando pelo litoral, olhando o mar sem o prazer de navegar.

A mesma George Elliot assegura que “fracassar depois de longa perseverança é muito mais sublime que nunca ter feito um esforço suficientemente bom para ser chamado de fracasso. Nunca é tarde demais para ser aquilo que sempre se desejou ser”, conclui de forma tão sábia e justa!

Não temos o direito de limitar ou desencorajar os sentimentos mais profundos de nossas crianças e jovens, baseados em nossos fracassos, mesmo porque nós podemos ainda dar um outro sentido ou outra cor às nossas existências. Sempre é tempo. Sempre há tempo! Entra de cabeça! Os remos, o barco e o mar estão disponíveis para a aventura humana e não apenas para uma selfie para o instagram.

Autor

Drika Vieira e Carlinhos Rodrigues
Atores profissionais, dramaturgos, diretores, produtores de teatro e audiovisual, criadores da Cia da Casa Amarela e articulistas de O Regional.