E se o mundo ‘acabar’?

O mundo não acabará. Nunca se acabará. Não se acabará segundo as perspectivas da Ciência: tanto para estudiosos da Astronomia quanto da Biologia, por exemplo, no máximo as coisas (os elementos e os seres) podem mudar de lugar e se transformar, ainda que os buracos negros engulam tudo ou a cadeia alimentar se inverta completamente. O mundo também não se acabará segundo as afirmações da Religião: o Apocalipse cristão, por exemplo, nada é senão uma renovação purificadora da terra e da humanidade; o Fim, segundo São João, seu oráculo, não existe; o que haverá (pelo menos é o que está escrito lá) é um recomeço cósmico que recolocará a Criação no lugar.

Mas, não importa. Não vamos palpitar sobre colapsos espaciais nem sobre Paraíso e Inferno ou quaisquer temáticas afins. A idéia aqui é fazermos um simples mas profundo experimento de habilidades pessoais. Vamos brincar de supor e, supondo, adicionar nossa biografia, nossa individualidade, à suposição. Exercício de ficção científica por um lado, teste de qualidades humanas por outro.

Digamos que amanhã o planeta sofra algum grande colapso que leve à extinção de 99,999% (e segue a dízima periódica...) da nossa sempre escatológica espécie humana. Digamos que, neste evento (seja guerra nuclear, desalinhamento de órbita planetária, mudança de campo magnético, vulcanismo, cataclisma climático etc.), sejam perdidas todas as tecnologias e exemplares destas surgidas desde a Primeira Revolução Agrícola há uns 10 mil anos atrás. Digamos que sobrem apenas dois seres humanos: você e outro -- um Adão e uma Eva pós-fim-do-mundo. Conseguiu imaginar este cenário?

Pois bem. Agora, a questão: de tudo aquilo que o mundo que acabou deixou para trás, o quê você seria capaz de reconstruir? Sem Internet e sem livros, sem mapas, sem manuais de instrução, sem pergaminhos e sem vídeos tutoriais de “faça você mesmo” no YouTube. Só você com todo o conhecimento que conseguiu acumular até hoje (porque, lembre-se, o mundo acaba amanhã). Só você: com seu Autodidatismo, com seu Primário, com seus Ensinos Fundamental, Médio, Superior e mais além. Só você e, claro, a sua Eva ou o seu Adão. O quê você saberia recolocar de pé? O mínimo de engenharia e arquitetura para uma cabana? Algum rudimento de mineração e siderurgia para uma faca, um garfo, um martelo? Conseguiria chegar à tecnologia da Pedra Lascada ou, quem sabe um upgrade, da Pedra Polida? Quem alcançaria um pouquinho da Idade dos Metais (Cobre, Bronze e Ferro)?

O quê você saberia recuperar da Música e da Poesia? Algum soneto de Shakespeare inteiramente decorado? Quantos versos da Bíblia Sagrada musicados por Bach ou Palestrina? Pelo menos os Dez Mandamentos, base da mais comezinha legislação moral? E da Medicina? Já leu alguma bula de remédio da parte da posologia até àquela que nos conta sobre os efeitos colaterais? Conhece sobre princípios ativos, sobre química básica um pouquinho além da Tabela Periódica, sobre parto natural e manobras de salvamento? Já leu receitas de chás medicinais daqueles livros do tipo “Medicina Alternativa de A a Z”? Conseguiria fazer uma fogueira tal qual um morador da Caverna de Altamira há 30-e-tantos mil anos passados? Seria capaz de recomeçar a agricultura dominada pelos neandertais? Poderia desenhar, tecer, cozinhar, domar animais, amassar tijolos de argila, fabricar flautas de ossos, tintas de vermes e de plantas, caçar? E quanto às noções estruturantes da Escrita? Seria capaz de transmitir a um possível filho este nosso dom supremo, a Língua?

Ao responder a questão, você responde (um pouco, só um pouco) sobre seu valor sociológico. Bom dia, boa tarde, boa noite e durma com esta!

Autor

Dayher Giménez
Advogado e Professor