E se nós dois

E se nós dois não soubéssemos ler e escrever? As letras e, s, e, n, o com acento agudo (´), s, d, o, i, s, etc, seriam indistinguíveis tanto sozinhas quanto formando sílabas, palavras, frases e textos. Nada seriam senão rabiscos, linhas contorcidas e contínuas maiores ou menores, zigue-zagues de pequenas imagens mais ou menos conectadas, semelhantes ao que vemos quando prestamos atenção ao sânscrito e ao armênio ou ao klingon e ao élfico da ficção. Nós não as saberíamos juntar para entendê-las e compreendê-las -- para ler. Nós não as saberíamos ajuntar para sermos entendidos e compreendidos -- para escrever.

Já se aceita que uma espécie de “proto-escrita” (sinais de notação, basicamente) começou a se desenvolver há uns 35 mil anos, durante o Paleolítico Superior. A Escrita, propriamente, teria surgido bem depois, por volta de 4 mil A.C, já no Neolítico Tardio. De qualquer forma, a palavra grafada é um fenômeno recente em termos históricos. E muitíssimo mais recentes são a alfabetização coletiva e o direito universal à Educação: o artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos data de 1948.

Se nós não soubéssemos ler e escrever, nós não saberíamos como é ler e como é escrever. Entretanto, saberíamos o que é a leitura e o que é a escrita, porquê veríamos os outros (como bilhões de seres humanos veem diariamente, passivos diante Palavra) lendo e escrevendo. Você já conversou com um analfabeto? Algum iletrado já lhe contou sobre as desventuras de não conseguir assinar o próprio nome em documentos pessoais, de não poder se informar através da bula do remédio que toma há décadas, de não ser capaz de pegar autonomamente um ônibus?

Eu, que vivo falando sobre a importância da Alta Cultura e da Literatura Clássica, volta e meia me pego “esquecendo” do óbvio ululante: tem gente que não apenas nunca ouviu falar de Virgílio, de Dante e de Shakespeare, mas que também seria incapaz de, entrando numa biblioteca, distinguir, julgando pela capa, pelo título, “O Doce Veneno do Escorpião”, da Bruna Surfistinha, do “Paraíso Perdido”, de John Milton. E não seria muito melhor poder ler o best-seller da Raquel Pacheco, o nome real da moça que muito provavelmente nunca pegou uma onda na vida, do que não ler nada?

Pois é... Os pesos e contrapesos morais mudam muito conforme mudam as condições do humano sobre quem recai nosso julgamento cultural. Uma coisa é descer a lenha nos imortais da Academia Brasileira de Letras por concederem a Medalha Machado de Assis ao Ronaldinho Gaúcho, enquanto, há décadas, eles desprezam Adélia Prado e Ângelo Monteiro; outra é descer a ripa na molecada dos Ensinos Médio e Fundamental por lerem pouco na quantidade e mal na qualidade. Mas, e como ficam os analfabetos nesta nossa tabelinha literária de “presta”/“não presta”?

E quanto a nós dois? Você e eu. Nós sabemos ler e escrever. Se não soubéssemos, não estaríamos travando este diálogo. Você e eu sabemos juntar e ajuntar razoavelmente bem as letras. Sabemos como funcionam os fonemas. Eu escrevi e sei ler. Você está lendo e sabe escrever. Nós dois não somos vítimas do silêncio absoluto das placas de trânsito mesmo quando pictóricas. Nós dois não somos alvos da indigência verbal diante de documentos no cartório, de contratos sobre a mesa ou de laudos médicos do INSS. Nós dois não enfrentamos a dificuldade de, diariamente, suar em bicas para decifrar as verdadeiras “pedras de roseta” que os analfabetos enfrentam para dar conta das rotinas mais simples. Nossos processos neurofisiológicos, cognitivos, afetivos, argumentativos e simbólicos estão ok. No entanto, pelo menos 16 milhões de brasileiros não podem decodificar, compreender, interpretar e reter este meu artigo de hoje.

E se nós dois fizéssemos algo a respeito, em um movimento de dentro para fora dos nossos intelectos? Primeiro: lendo mais. Segundo: doando livros. Terceiro: ensinando alguém a ler ou apoiando diretamente iniciativas de alfabetização solidária.

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Autor

Dayher Giménez
Advogado e Professor