Diga muitos nãos
É tentador para muitos querer abraçar o mundo. Não é pequeno o número de pessoas que, por conta de um complexo de messias ou por auto-estima reduzida, querem fazer tudo para todos a fim de ganharem destes aprovação e o adjetivo no mínimo inferiorizante de “bonzinho”. Há quem adore satisfazer as demandas alheias, nem que tais lhes custem sua própria vontade, predileção e qualidade de vida.
Por óbvio não estou dizendo que não devamos ser gentis e, na medida do possível, colaborativos com conhecidos e desconhecidos. Nada disto. Estou dizendo que dizer sins sem critério aos rogos do mundo e da multidão que nos cerca é a primeira condição para uma vida de escravidão, de deformação e de fracionamento da própria personalidade.
Portanto, diga não. Diga muitos nãos. Nãos firmes, nãos objetivos, não capazes de impedir e de bloquear segundas intenções e terceiras tentativas. Diga nãos racionais, que sirvam de filtro às suas prioridades existenciais. Diga nãos educados, uma vez que nenhuma porta pode ser irremediavelmente fechada para ambos (não se sabe o dia de amanhã, certo?). Diga nãos régios, de modo que sua entonação seja ao mesmo tempo justa e caridosa para quem o recebe. Mas, por favor, diga nãos.
O mundo exige submissão. As massas, sovadas pelo diabo, não se contentam com quem lhes dá “uma mãozinha” e logo querem devorar braços, pernas, membros e... o corpo todo. Ao gastar-se e desgastar-se com favores e serviços indiscriminados, aliás, você nivela aqueles que ama a todos os outros indivíduos. E isto é mal. É preciso dar mais a quem está qualificado por relações efetivas e afetivas. É preciso dar menos a quem não está entrelaçado às nossas vidas por lações e lições mais profundas. Dar, dizer sim, exige este discernimento de hierarquias.
Nós só somos personalidades adultas, regularmente enraizadas na Realidade, quando agimos conscientes dos fins aos quais agimos, ou seja, dos objetivos de toda ação. Todo favor significa bem mais que a satisfação de uma necessidade de terceiro. Todo favor insere-se numa cadeia de ações-e-reações mais ou menos discerníveis, que afeta não apenas a vida de quem pede e a vida de quem aquiesce; antes, afeta a vida de uma pequena multidão de desconhecidos ou semi-[des]conhecidos. Dizer sim e dizer não a alguém é dizer sim e dizer não a outro alguém, no mínimo, ainda que nossa ignorância trate-o indigentemente, como a um ninguém.
Enfim, diga muitos nãos. A quantidade de nãos que você diz é proporcional a qualidade dos sins que recebe. Dose e meça cada assertiva singular com muitas negativas, pendendo-as justamente ao seu favor no que diz respeito ao auto-respeito. O mandamento cristão manda amar ao próximo como a si mesmo, certo? Logo, primeiro é preciso amar-se adequadamente para, depois, decidir quem, quando, porque, onde e quanto amar ao próximo. Medida de auto-cuidado é medida de cuidado e bem-querença com o semelhante, sobretudo com o grande respeito que é tratar-lhe como adulto responsável.
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