Destaques do Cinema

NA TEIA DA ARANHA
Exibido no Festival de Cannes (fora da competição) e depois no Festival do Rio, chega agora aos cinemas brasileiros pela Pandora Filmes o novo trabalho do diretor sul-coreano Kim Jee-woon, que esteve em São Paulo na semana passada para acompanhar a estreia e também participar da 14ª Mostra de Cinema Coreano no Brasil (mostra em parceria entre a Pandora Filmes e o Centro Cultural Coreano no Brasil, que segue até dia 19/06, no REAG Belas Artes). Pode não soar familiar o nome de Kim Jee-woon, mas ele é um diretor de filmes formidáveis de ação e terror que fizeram a cabeça de um público cult nas duas últimas décadas; são dele o horror sobrenatural ‘Medo’ (2003 – refilmado nos EUA em 2009 com o título ‘O mistério das duas irmãs’), ‘Os invencíveis’ (2008, uma paródia incrivelmente absurda do faroeste ‘Três homens em conflito’, de Sergio Leone, com muita ação e humor), ‘Eu vi o diabo’ (2010, filme de psicopata), ‘O último desafio’ (2013, ação com Arnold Schwarzenegger) e ‘A era da escuridão’ (2016, ação que se passa na Segunda Guerra Mundial). Agora ele fz uma comédia satírica que se volta ao mundo dos bastidores do cinema, por meio de uma história metalinguística e com teor autobiográfico, cheia de divagações na mente de um cineasta em crise. O contexto é a Coreia do Sul dos anos 70, controlada pelo regime militar autoritário de Park Chung-hee. Kim (Song Kang-ho) é um diretor criativo, mas criticado recentemente pelo seu cinema considerado trash. Ele está finalizando um novo trabalho que promete dar uma guinada na carreira, um filme de suspense com crime. Certo dia, pensativo, chega ao set de filmagem disposto a refazer o desfecho, após ter um sonho com um final alternativo. Só que o roteiro com a parte nova é censurado pelo governo vigilante, uma ditadura. Ele então convence elenco e produção a gravar as partes escondido – para tanto, todos se trancam num estúdio sem ninguém saber, durante dois dias. O set se transforma num caos, com brigas, problemas técnicos e falta de compreensão da equipe. Uma sátira que se utiliza do tragicômico para mostrar como a ditadura censura a liberdade de expressão impondo os seus valores. Estrelado por Song Kang-ho, astro sul-coreano de filmes como ‘Memórias de um assassino’ (2003) e ‘Parasita’ (2019), o filme tem uma estrutura engenhosa, que mistura realidade e ficção – no final entendemos o título em português. Aliás, também no final, há uma cena marcante, um grandioso plano-sequência, em que vemos os dois lados – como aquilo tudo é gravado, nos bastidores, e depois como a cena fica pronta. Gostei muito do filme e recomendo.
DEUSAS EM FÚRIA
Escrito, produzido e dirigido por uma das personalidades mais importantes do atual cinema indiano, Pan Nalin, dos premiados dramas de aventura ‘Samsara’ (2001) e ‘Vale das flores’ (2006). ‘Deusas em fúria’ (2015) é um drama feminino envolvente, sobre a sororidade de um grupo de mulheres, amigas de longa data, que após uma confraternização abrem o jogo para relatar abusos sofridos, sejam por seus parceiros, pela sociedade ou oprimidas no trabalho. Elas inicialmente se reúnem para uma celebração, na casa de uma das amigas, que é uma fotógrafa e irá anunciar que está prestes a se casar. Durante um período de férias em uma casa de veraneio, as amigas compartilharão momentos íntimos, muitos deles por meio de memórias, numa jornada de descobertas que fortalecerá a relações do grupo. Entre rituais cotidianos, como cantar alto, dançar e jantar juntas em volta da mesa, elas revidam como podem a um mundo hostil às mulheres – na Índia, a população feminina é privada de seus direitos, desde o nascimento, forçadas ao trabalho e vítimas de machismo e estupro. Até que uma tragédia inesperada muda o curso da vida das amigas - uma reviravolta chocante ocorrerá na história, mudando o tom do drama para ação com suspense, justificando o título do filme. A fotografia do filme é marcada por passagens contrárias – é solar quando o grupo está unido em casa festejando, e escura e sombria no desfecho brutal. Exibido no Festival de Toronto, o filme está disponível no streaming Sesc Digital de forma gratuita até o dia 24/06, em https://sesc.digital
ROMANCE DE ESCRITÓRIO
Pouco se conhece do cinema da antiga União Soviética, exceto os filmes dos primórdios, das décadas de 10 e 20, de Dziga Vertov e Eisenstein, pais da linguagem construtivista, e os de Tarkovski, entre os anos 70 e 80, fase do Novo Cinema Soviético. Houve muitas produções nessa transição de épocas, entre as décadas de 30 e 70, de longas nunca lançados no Brasil. Salvo agora pela CPC-Umes Filmes, que vem, há um bom tempo, resgatando esse cinema perdido. A última descoberta da CPC-Umes é ‘Romance de escritório’ (1977), que entrou no fim de semana passado no programa ‘Cinema Soviético e Russo em casa’, no streaming da CPC-Umes no Youtube, gratuito. Com uma belíssima imagem restaurada pelos estúdios da Mosfilm em sua metragem original, de 158 minutos, é uma comédia romântica que critica costumes, principalmente sobre a vida dos burocratas controlados pelo Estado Soviético. O filme segue o dia a dia de funcionários de um escritório de estatísticas de Moscou durante o rigoroso inverno. Do lado de fora do prédio, o gelo toma conta das ruas, e do lado de dentro, um romance inusitado de um tímido trabalhador, Anatoly (Andrey Myagkov), com a chefe, Lyudmilla (Alisa Freyndlikh), chamada por todos de ‘bruxa’ – tanto pela aparência feiosa quanto por ser brava. Os dias maçantes do trabalho ganham cor quando eles estão juntos. Os dois não entendem direito a paixão, aparentemente nunca tiveram um amor, e ao tentar uma aproximação íntima, envolvem-se em trapalhadas que nos arranca risos. Narrado por um observador, o filme tem momentos de cinema pastelão e um desfecho engraçadíssimo de destruição do escritório. Um bom filme russo/soviético de comédia e romance na medida certa, voltado ao público cinéfilo que cultua filmes diferentões.
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