Desejo e Realidade

No romance de Shakespeare, Romeu morre com Julieta. É essa a tendência de quem fica vivo. No cotidiano, perder o que amamos nos entristece, o que é natural, porque a função da pena é representar dentro de nós o vazio que a pessoa amada deixou.

É preciso, como no teatro, representar o perdido, em razão de uma característica humana que consiste em desenhar no seu interior uma réplica do mundo que o cerca. Recordemo-nos dos velhos filmes da Segunda Guerra, nos quais os generais comandavam os exércitos frente a uma mesa com soldadinhos, ferrovias e cidades. Com um bastão tomavam edifícios, destruíam pontes, enfim, faziam tudo como em uma guerra, que na verdade eram duas: a de fora, na qual realmente disparavam bombas, e a outra, situada sobre a mesa, dentro do Estado-Maior, em que havia sua representação. Em certos momentos as tropas não podem realizar o que o quartel ordena e, em outros, é o quartel que não quer tomar conhecimento de algum desastre bélico. Ambas as situações ameaçam o resultado, mas mostram bem a curiosa interação entre os desejos e os acontecimentos.

Quando vivenciamos uma experiencia dolorosa, uma perda importante de qualquer espécie, de imediato devemos comunicar o quartel-general; representá-lo para poder adequar dessa forma a realidade operacional de nossa vida que, em função dessa informação, se modificou. Se contra toda evidência não o fazemos, persiste a ilusão de que tal perda não ocorreu, passando, assim, a operar com uma ideia errada de nossa posição. A causa dessa negativa é que esse dado é contrário ao nosso desejo.

Não é suficiente a morte real de alguém querido; esse fato requer, para ser internalizado, dispor de seu registro simbólico, sua representação. Há acontecimentos que ocorrem meses ou anos depois de sucedidos, pois esse foi o tempo que se levou para reconhecê-los, registrá-los e, obviamente, adequar a maquete a essa situação. A censura à imprensa atua da mesma forma: quando um fato não convém, se oculta ou se transforma para atenuar seus efeitos contrários a seus interesses.

Mas os fatos ocorridos na realidade e ignorados por força do desejo perambulam como fantasmas. Sabemos que os mortos necessitam da materialidade do seu enterro para poder “registrar-se” no céu. Na realidade exterior, os acontecimentos ocorrem sem aviso prévio; na realidade interna, burocraticamente concedemos ou negamos autorização para que sucedam. Por isso a realidade está dentro desse quartel em que produzimos, dirigimos e representamos a versão pessoal de nossa vida.

Mediante esse recurso, algumas pessoas perderam a guerra há muito tempo, mas a ignoram até hoje. Quando o que ocorre é muito diferente do que desejamos, a guerra muda de frente e a batalha situa-se entre o fato e seu conhecimento. Nesse conflito, quando o que predomina é a realidade, a aceitamos porque tornou-se inapelável, impossível de censurar. É o que ocorre em um luto normal, no qual se reconhece o perdido e se pode, então, elaborar. Em troca, quando os desejos conseguem transformar a realidade, ou corrompê-la, é possível que um fato ocorra e possamos negá-lo descaradamente ou, como uma variante da negação, tirar-lhe toda a significação.

Autor

Ivete Marques de Oliveira
Psicóloga clínica, pós-graduada em Terapia Cognitivo Comportamental pela Famerp