De frente pro crime
Semana passada, foi amplamente divulgado pela imprensa a queda de um grande esquema de lavagem de dinheiro. Pela reação da própria imprensa e das pessoas com quem convivo, notei um fato: para impressionar as pessoas, os crimes têm que ser cada vez mais espetaculares, com grandes cifras, com números espalhafatosos. Lembrei-me na hora de uma música lançada há 50 anos, “De frente pro crime” (1975), de autoria do engenheiro civil João Bosco (1946 - ) e do médico psiquiatra Aldir Blanc (1946 – 2020).
A canção não é apenas uma narrativa musical: é um retrato de uma sociedade que se acostumou a conviver com a morte como se fosse parte da paisagem. “Um corpo estendido no chão”, cantado com melodia quase alegre, escancara a contradição entre a brutalidade da cena e a naturalidade com que é recebida por quem a presencia. O camelô segue vendendo suas mercadorias. A baiana frita o acarajé. Alguém discursa. A vida continua, indiferente, como se a tragédia fosse apenas mais um detalhe do cotidiano.
A música traz em si a força de uma poesia. Não interessa o motivo do crime nem quem foi a vítima: o que importa é a frieza social diante da vida que se foi. No samba, cada personagem aparece preso a seus próprios interesses, incapaz de enxergar no corpo caído algo além de estatística. A indiferença não é apenas tema da letra, mas atravessa a própria melodia, que insiste em manter o ritmo festivo sobre o fato consumado. A banalidade é representada pelo jornal que recobre o corpo, com uma foto de um gol na altura do rosto.
O gesto do narrador, que fecha a janela “de frente pro crime”, é metáfora poderosa: quantas vezes repetimos esse movimento simbólico, preferindo não ver, não saber, não sentir? Os autores não entregam respostas, apenas nos devolvem perguntas incômodas. O samba, nesse caso, não é alívio, mas provocação, um convite para reabrirmos as janelas da sensibilidade, para reconhecermos que cada corpo no chão carrega uma história que nos atravessa.
Ouvir “De Frente pro Crime” hoje é um exercício de memória e de consciência. Se na década de 1970 já soava como retrato sombrio do Brasil urbano, hoje soa quase premonitória. A canção nos lembra que, diante da violência e da desigualdade, a apatia talvez seja a pior cumplicidade. A música, assim, não envelhece: renova sua urgência a cada crime diante do qual decidimos virar o rosto.
A música está no álbum “Caça às Raposas” de 1975. Constam deste trabalho mais dois clássicos da MPB: “O mestre sala dos mares”, que trata do marinheiro João Cândido Felisberto, o “Almirante Negro” e um dos líderes da Revolta da Chibata e “Kid Cavaquinho”, que fala do poder deste instrumento. Ouvir este álbum é visitar um Brasil que permanece o mesmo. Talvez seja esse o convite mais urgente que a música nos faz.
Autor