Criança também se autodestrói

 

O escritor Albert Camus disse: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou dez categorias, vem depois”. 

Poucos temas provocam tanta polêmica entre os estudiosos de ciências humanas quanto as causas das tentativas de suicídio. A maioria dos trabalhos concentra-se na adolescência e na idade adulta (período em que ocorre maior número de tentativas). No entanto, as crianças também se desesperam de modo irreversível diante da existência. 

De acordo com estatísticas europeias, o suicídio na infância supera o número de mortes por tumores, hipertensão, leucemia e outras doenças letais. Em termos de realidade brasileira, o assunto já deixou o campo da mera hipótese técnica para tornar-se realidade. 

Em nosso contexto, uma análise pormenorizada dos casos atendidos assinala que a tônica é a condição socioeconômica: é a miséria extremada que leva ao desespero um sem-número de pessoas. E, embora seja indevida qualquer generalização, grande parte dos casos correspondem a situações de vida insuportáveis. 

Ao recorrer ao suicídio como alternativa para devaneios e sofrimentos existenciais, algumas pessoas não estão necessariamente buscando a morte. A pessoa que recorre ao suicídio, em geral, não tem o conceito de morte que implica no desaparecimento total e fatídico. Ela busca muito mais um possível paraíso, a reencarnação, a fusão com o todo. A morte surge como consequência, não como busca deliberada.

Inúmeros relatos de pessoas que tentaram o suicídio revelam que aquilo que menos queriam era morrer. No que se refere às crianças, os meios utilizados podem não ser eficazes e, assim como entre os adultos e os adolescentes, o meio mais utilizado pelas crianças na tentativa de suicídio é a ingestão excessiva de medicamentos. Por um lado, medicamentos são deixados com frequência em locais de fácil acesso. Por outro lado, nossa sociedade não suporta a ansiedade e a dor; a medicação é utilizada em excesso como forma de alívio imediato de qualquer sintoma. As crianças cedo aprendem a função do remédio e a dificuldade de enfrentar frustrações.  

Na quase totalidade dos casos, os profissionais atribuem a tentativa de suicídio da criança a um acidente doméstico. Mesmo quando as crianças manifestam desejo de morrer, o gesto é visto como “coisa de criança”, não como um ato destrutivo. Depoimentos desses profissionais nos remetem à violência da televisão para justificar a incidência da tentativa de suicídio na infância. Ou seja, a destrutividade e o desejo de morrer não são levados em conta em sua verdadeira essência. Um dos primeiros passos para que a tentativa de suicídio na infância mereça toda atenção e cuidados é, portanto, a verdadeira sensibilização dos profissionais de saúde para a problemática e posteriormente de toda a sociedade.  

Autor

Ivete Marques de Oliveira
Psicóloga clínica, pós-graduada em Terapia Cognitivo Comportamental pela Famerp