Cozinha, Tempo e Psicanálise

Cozinhar é um convite para adentrar etapas de um processo e sobretudo experenciar uma relação diferente com o tempo. Enquanto cozinhar transforma o alimento bruto em algo singular e único, este ato encontra correspondência com etapas e mudanças da vida e com o exercício de que nada vem pronto, tão parecido com o nosso mundo interno.

O aprendizado que o ato de cozinhar oferece é único e podemos observar que na cozinha o tempo e a qualidade dos ingredientes interferem no resultado, sendo esta uma das condições para que uma receita saia como o esperado, e mesmo quando não sai, continua a nos ensinar algo.

Esta oportunidade de pensar como lidamos com o alimento encontra também correspondência com vivências internas: como nos alimentamos, para quem cozinhamos, assim como o próprio produto que utilizamos para nutrir o organismo, ou seja, aquilo que colocamos dentro de nós ajuda a pensar e entrar em contato com o que de fato faz sentido quando pensamos em processo, execução, transformação e cuidado.

Desde a pré história diversas experiências culturais são transmitidas pelo alimento, sendo comum em datas comemorativas utilizarmos estas transmissões para expressar sentimentos e origens que fizeram e fazem parte da nossa constituição genética e subjetiva, revelando uma identidade que é capaz de nomear muito do que somos.

Na psicanálise observamos instrumentos comuns para pensar quem somos, e o que esta experiência tem em comum com o processo de cozinhar é o próprio fato da experiência enquanto transforma uma coisa em outra, assim como pelo cuidado e tempo que dedicamos ao que consideramos importante, também em relação a paciência e afetividade que colocamos no processo. Não se cozinha odiando, se cozinha por amor e pelo desejo de aprender e para alimentar, sobretudo pensando no que introjetamos para dentro de nós.

O primeiro alimento desde o nascimento vem através de uma experiência de alguém (mãe ou substituto) que abre espaço em sua vida para nutrir o desenvolvimento interno e externo do bebê, e quando isto acontece de forma satisfatória, o faz sentir correspondência em seu pertencimento.

O simples ato de ir até a cozinha e pensar no que fazer traduz convicções e o quanto nossa subjetividade entende que as transformações acontecem e podem ser vivenciadas neste processo, tendo o alimento como resultado de uma experiência que foi sentida minuto a minuto e que nos faz desfrutar daquilo que nos fez capaz de construir algo para nós mesmos e que não tem a ver somente com o resultado, mas sim com a própria experiência de construção e processo.

Embora na mente o tempo seja singular e contenha o grande agente transformador, o que cozinhar tem em comum com a psicanálise é o próprio fato da disponibilidade interna que nos levamos nestas duas situações, que ao mesmo tempo que parece ser simples e corriqueiro, é capaz de nos levar a lugares novos e desconhecidos.

Quando abrimos mão de viver esta experiência em nosso cotidiano, de certa forma terceirizamos funções importantes, pagando para que alguém faça isto quando somos nós mesmos que temos que arregaçar a manga e trabalhar para conseguir um bom resultado: do alimento e quando entramos em contato com nossa subjetividade em nosso processo de análise.

Na contemporaneidade sofremos com a falta de tempo, mas mesmo quando não conseguimos exercitar esta ferramenta de aprendizado que a cozinha é capaz de proporcionar, pensar em como nos alimentamos tem muito a nos ensinar, uma experiência que pode modificar a relação que temos com nós mesmos quando pensamos em transformação, cuidado e subjetividade. E isto não se parece com psicanálise?

A cozinha ensina paciência, etapa, tempo, criatividade, generosidade, improvisação e sobretudo dar para o outro um amor concreto que é capaz de nutrir além do próprio alimento. Cozinhemos!

Música “Mal ô Mains” com Sanseverino.

Foto de Acervo @cinemaeartenodivã ©

Autor

Claudia Zogheib
Psicóloga clínica, psicanalista, especialista pela USP, atende presencialmente e online. Redes sociais e sites: @claudiazogheib, @augurihumanamente, @cinemaeartenodivã, www.claudiazogheib.com.br e www.augurihumanamente.com.br