Choque e Realidade

No primeiro dia do ano assistimos em Brasília a festa da posse onde se via claramente a inclusão e o respeito. No dia 8, assistimos uma barbárie contrariando todos os meios que lutam pela democracia no país.

Assustados, todos acompanhamos as notícias, e diante do caos que vimos pelos meios de comunicação, a indignação e o medo permearam o sentimento de muitos cidadãos no país.

A palavra democracia nos respalda para sabermos desde sempre que em qualquer estado quem ganha as eleições vai ser o representante escolhido pela maioria, portanto terá que dialogar com outras matrizes de pensamento para exercer seu governo em sua cidade, estado e país.

A palavra hostil vem de hoste e trata-se de um grupo de pessoas orientadas para o alcance da violência coletivamente instrumentalizada como nas tribos de vândalos.

Quando estabelecemos uma comparação com o que vimos no dia da posse do atual presidente e o que assistimos no dia 8 de janeiro, fica-nos evidente que a destrutividade presente no grupo que estava no dia da barbárie ultrapassou a linha tênue que divide o normal do patológico.

Winnicott em 1945 notou que alguns de seus pacientes apresentavam questões preocupantes, e estariam lutando para estabelecer e manter uma sensação de unidade que em seu caos interno teria sido alcançado de forma parcial e bastante insipiente, impedindo-os se perceberem, de saberem de si e dos outros, assim como das singularidades existente entre as pessoas.

As questões triangulares relativas ao desenvolvimento do bebê, quando estabelecida de forma satisfatória, dá a ele a possibilidade de iniciar seu desenvolvimento na cultura, proporcionando vivenciar experiências que o faça se sentir pertencente ao mundo que o cerca.

Neste estabelecimento, ele será capaz de passar por estágios de desenvolvimento que o torne capaz de aprender, introjetando seus pais ou responsáveis, a cultura, assim como suas pulsões de forma a absorver o entorno, e principalmente saber que nem sempre o que ele quer pode ser realizado, aprendendo sobretudo sobre sua destrutividade e do que ela é capaz de ocasionar quando não internalizada e transformada pela experiência, investindo no instinto de vida, em sua sobrevivência e na coletividade.

Quando a experiência de aprendizado e do processo de maturação não ocorre de forma satisfatória, o indivíduo se torna um adulto que não é capaz de saber de si, que não consegue internalizar regras, que não consegue lidar com perdas e luto.

Torna-se então um adulto impossibilitado de lidar com normas, mimado, com grande propensão para a destrutividade e ódio que não foi controlado e transformado pela experiência em instintos construtivos e de sobrevivência.

Algumas pessoas apresentam grande dificuldade em manter os limites entre as realidades interna e externa, tendo uma perda da sensibilidade corporal constituída de maneira que seu próprio corpo possa se oferecer como lugar de morada, dando-lhe a sensação de existência singular, tendo uma regressão transferencial, um processo de desintegração egóico no qual é acompanhado de um intenso estado de angústia e sensações de despedaçamento, aniquilamento ou morte.

A falta de maturação egóica representa um estado onde o sujeito cinde com a realidade e toma para si a incumbência de colocar ordem no caos que sente dentro, partindo para a justiça pelas próprias mãos na tentativa de amenizar a desintegração que ele sente de si.

Neste funcionamento, a tentativa é de domar o caos dentro, quase sempre sem correspondência dos fatos, mesmo porque, fora existem regras e limites que norteiam as ações coletivas, assim como toda ação fora da regra traz consequências para todos, até para quem as praticou.

Quando grupos se encontram neste mesmo funcionamento mental, a consequência é a confusão, a depredação, o despedaçamento.

Na integração do processo de constituição subjetiva, pensar em nossas atitudes e suas consequências é a maneira mais eficaz de sabermos que quando estamos inseridos em uma sociedade precisamos respeitar regras, e quando estamos diante de um patrimônio público, os danos às vezes são irreparáveis para todos, até para quem praticou a destruição.

Não se pode roubar o que é do outro, decidir sobre o destino do que é do outro, destruir e ameaçar a paz dos outros. Este tipo de atitude não tem justificativa que caiba em qualquer constituição, mesmo se por meios escusos conseguindo aprovação na lei.

Quando um indivíduo está sob o domínio da cisão, sua “esperteza” encontra justificativas que o validem tomar decisões arbitrárias, e estando num grupo, as ações se potencializam e ganham força, muitas vezes atrelados a vivências traumáticas ocorridos predominantemente na infância.

É preciso pensar sobre como estamos nos portando diante da democracia, uma vez que fazemos parte e a construímos.

Em tempo, este texto foi escrito ao som da música “Alegre Menina” de Dori Caymmi, cantando Djavan.

Autor

Claudia Zogheib
Psicóloga clínica, psicanalista, especialista pela USP, atende presencialmente e online. Redes sociais e sites: @claudiazogheib, @augurihumanamente, @cinemaeartenodivã, www.claudiazogheib.com.br e www.augurihumanamente.com.br | Foto: Renato F. de Araujo @renatorock1 ©