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Nunca quis a felicidade como um fim planejado, entretanto, ocorreu-me em muitos dias uma alegria de especial candura e sem razão concreta. Nunca busquei o amor como um prêmio cobiçado, mas, várias vezes, meus olhos empurraram minha cabeça para direções propícias nas quais se encontravam outros olhos que me impregnaram, encheram-me a ponto de não conseguir dar mais um passo que não fosse na direção desse olhar onírico que depois ganhou o nome - por algum tempo, por muito tempo - de “meu amor”.  

Jamais me dispus a sentir raiva a priori, e, quando quis, fracassei, embora ainda me assuste com as explosões vulcânicas de meu espírito - que contenho com muito custo, deixando escapar, envergonhado, lava e fumaça - sem que eu consiga precisar o tremor sísmico que a tenha antecedido. 

O que me atravessa o corpo, às vezes, já de manhãzinha, quando estranho aquele rosto, vincado no espelho que sei ser o meu, mas, com o qual não me acostumo, não tem propriamente um nome, ou melhor, não encontro uma palavra definitiva para ele e, por isso, chamo a sensação que me acomete de “calafrio" e o seu efeito - o vazio na boca do estômago - de “angústia”.

Se no resto do dia esqueço é porque me distraio, mirando os objetos que se apresentam ao meu desejo e tentando me transformar neles: trabalho, consumo, lazer. Até que, em um ponto qualquer da cidade, em uma hora qualquer do dia, dou-me de cara outra vez com o personagem que costuma se chamar de “eu”. 

Nunca quis ser uma pessoa realizada, e essa é, para mim, a palavra mais esquisita de todas. Jamais consegui capturar seu sentido, nem mesmo pelas bordas. O que me tornaria real e definitivo? Talvez isso aconteça somente quando eu for um corpo inerte, passado. Mas mesmo aí, outro movimento ocorrerá, o do meu desaparecimento, sem meu álibi ou consentimento.

Enquanto escrevo essas palavras, sei que me esgueiro e sou e estou em vários lugares além daqui, e o que digo é um registro de um outro tempo, longínquo, ou algo que só fará algum sentido muito além desse texto, quando uma pessoa qualquer ler (terei eu esse leitor atento?) e sentir o meu calafrio em seu próprio corpo. O meu não, o dela própria. Ou o nosso, pois talvez o calafrio não tenha dono nem preferência de morada. 

Sócrates, o filósofo grego, sofreu por saber demais que sabia de menos. Entendia que não querer saber era o mesmo que estar morto. No entanto, não há um espaço próprio em que o saber se localiza, apenas um corpo que se prepara em atenção e sensibilidade para reconhecê-lo a qualquer momento e em qualquer lugar, para desfrutá-lo nos segundos do encontro que é como um nó, começo e fim no mesmo instante.

Viver, parece-me, é estar pronto para esse acaso, evitando o risco sempre presente de não reconhecê-lo quando ele dobra uma esquina ou esbarra em seu ombro em meio à multidão indiferente. É isso o que eu acho. Eu acho. 

 

Daniel Medeiros 

Doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.

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Artigos de colaboradores e leitores de O Regional.