Advogado de Deus

A expressão “Advogado do Diabo” tem meia dúzia de vieses de significado, mas são apenas dois os mais utilizados: (1) o “Advogado do Diabo” enquanto antagonista retórico de uma idéia a qual não necessariamente se opõe, mas contra a qual apresenta forte argumentação justamente para provar ou não sua validade; (2) o “Advogado do Diabo” enquanto apelido pejorativo do profissional da advocacia, sobretudo daquele que pretende, em juízo, defender um acusado contra quem pesa culpa grave e notória, ao menos sob o ponto de vista público da sociedade.

Vamos conversar sobre este segundo viés?

Apesar desta expressão ter certa conotação teológica, ela não se encontra registrada sequer implicitamente na Bíblia. Ao contrário, conceitualmente apenas Jesus Cristo é considerado “Advocado dos Homens” diante de Deus, ou seja, defensor de culpados confessos, pecadores, que carecem não do “contraditório” e da “ampla defesa” assegurados pelo inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal, mas da clemência do Pai, justo juiz, perante sua própria Palavra, sua Lei. Jesus Cristo, defensor universal e absoluto dos culpados, é, portanto, “Advogado de Deus”, já que neste tribunal tanto magistrado quanto causídico e testemunha -- o Espírito Santo -- estão “mancomunados” (sem qualquer impedimento ou suspeição) em favor da absolvição sumária dos seres humanos...

Então, se Deus, ao defender o absolutamente condenado, é advogado de si mesmo contra o julgamento da sociedade contra o réu humano por Ele defendido (basta recordar o episódio do apedrejamento da adúltera, no Evangelho de São João), fica a pergunta: por que o advogado brasileiro, o bacharel formado e devidamente inscrito nas fileiras da OAB, deve ser vilmente ofendido com a pecha de “Advogado do Diabo” apenas por se propor (dentro das famigeradas 250 linhas-artigos da Constituição e de todo o restante ordenamento jurídico) defender justiça “pura e lídima” através de um julgamento minimamente justo, de acordo com as regras do jogo? Por que esta má fama contra a profissão de Santo Ivo?

A resposta é a mesma dada a tantas outras discrepâncias éticas do brasileiro: preconceito. Existe preconceito contra quem não vê tudo como “preto no branco”, como letra fria calcada em formalismos por um lado e moralismos por outro. Existe preconceito contra quem procura ponderar psicologicamente aspectos subjetivos diante de fatalismos legalistas excessivamente objetivos. Existe preconceito contra quem analisa pontos de vista pontuando que praticamente toda visão tem seu ponto-cego. Existe preconceito contra quem não quer ferir olhos e dentes como reação a outros olhos e a outros dentes anteriormente feridos. Sobretudo, existe ainda maior preconceito contra quem assim procede em benefício justo, ainda que mínimo, daquele que agiu com malefício: existe preconceito contra o advogado.

Vamos reconsiderar utilizar esta expressão contra um profissional que, amanhã talvez, pode atuar na defesa de um familiar, amigo, colega ou vizinho seus?; que pode atuar na sua defesa?

Autor

Dayher Giménez
Advogado e Professor