A quem entregar o eu verdadeiro
Só podemos ser íntimos de quem nos ama. Só podemos ser quem somos de verdade com um punhadinho de outros seres humanos. O amor (nas suas quatro vertentes: afeição, amizade, eros e caridade) demanda uma espécie de entrega em que um quer a totalidade essencial do outro, de quem a recebe e a quem também entrega. À propósito, não confunda totalidade de essência com totalidade de tempo, presença e atenção -- limitados por natureza. Quando você ama, você quer o todo do seu pet, o todo do seu amigo, o todo da sua namorada-noiva-mulher/namorado-noivo-marido, o todo de quem você dá sem esperar materialmente nada em troca. O que se espera é a reciprocidade da abertura humana total, completa, integral, absolutamente autêntica e desinibida na espontaneidade em que o indivíduo é como de fato é. É este o significado de “o todo”.
Então, você não pode se dar indiscriminadamente ao mundo e a todo mundo. Você não pode abrir os portais da sua alma, os tesouros ocultos do seu espírito, cada grandeza e cada ninharia, cada potência e cada fragilidade, cada perfume e cada fedor de caráter, a qualquer um. Precisamos ter muito critério e escolher seletivamente as pessoas que poderão nos ter por inteiro. Precisamos, como aquela boneca russa, a matrioska (na qual uma contém outra, que contém outra, que por sua vez contém uma outra e assim sucessivamente até chegar na última, a única que não é oca), nos dar por camadas, conforme o outro aceita de bom grado e passa a amar a nova profundidade recém-descoberta. Um véu por vez. Um verniz por vez. Um degrau por vez até o porão sentimental, até o sótão mental, até o âmago do ser.
Se somos “arregalados”, como diz o caipira, acabamos deixados de lado. É importante não se arregalar. É de lei não se arregalar. Muitos se arregalam, se abrem exageradamente porquê são de natureza muito espontâneos e extrovertidos; outros, porquê são patologicamente carentes e desejam com obsessão ter alguém com quem dividir sua totalidade, ainda que na base do fracionamento forçado. Quando você se dá pelos motivos errados e sem a retribuição do outro, este outro se enoja, sente repulsa, te rejeita e foge em disparada. Naturalmente... Afinal, não é razoável que alguém se revele totalmente de uma vez, sem antes sondar melhor o terreno e ganhar certezas maiores sobre com quem se lida e, sobretudo, sobre porquê se lida. Lembram do clichê do sujeito, emocionadíssimo, que se declara e propõe casamento logo no primeiro encontro? É isto. Qualquer pessoa sã fugiria. E tem que fugir mesmo. Ninguém quer a exposição do ser íntimo do outro de graça, do nada, sem conexões legítimas que sustentem o baque que é um relacionamento verdadeiro, adulto, compromissado. Você só pode ser você com quem quer você e com quem você quer. Ah, e é pouca gente! Pouquíssima. Como dizem as avózinhas: “olha aí pra tua mão e conta quantos dedos ela tem!”
Recordo esta frase lapidar de São Tomás de Aquino: “A ninguém te mostres muito íntimo, pois a familiaridade excessiva gera desprezo.” O grande gênio medieval resumiu bem o nosso papo de hoje.
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