A ousadia rebelde

O conhecimento de algo dá-se por suas causas. Não saber do que algo é feito, de onde veio, quem o fez, como e por qual razão, dificulta, senão impede saber do que se trata. A coisa, cujas causas não são conhecidas, é algo que existe em nós ou em volta de nós como um espectro, e convivemos com ela atribuindo-lhe uma dimensão mágica, fruto da nossa imaginação, pois que nossa razão não a alcança. Como dizia o personagem de Ariano Suassuna, tão gentil e engraçado em sua ignorância: "Não sei por que foi, mas sei que foi assim.” A natureza então existe por razões que não podemos explicar e nos relacionamos com ela como se vivêssemos em um sonho delirante no qual as coisas surgem do nada, por nada e para atender a fins que variam de pessoa a pessoa, ocasião a ocasião. Se é bom para mim, então é bom; se é agradável para mim, então é agradável. Como no Gênesis, vamos dando nomes às coisas pelo impacto que nos causam. Com o tempo, porém, passamos a crer que se tratam de características das próprias coisas. Uma loucura!

Poucos pensadores foram mais enfáticos para os riscos dessa imaginação perniciosa das coisas do que Spinoza. Para ele, a superstição era a grande inimiga da liberdade, pois nos aprisiona em um mundo irreal, um mundo de fake news. Para o filósofo holandês, a principal superstição é a de que todas as coisas agem em função de um fim, que deve ser um fim bom para os bons e mau para os maus, como se Deus, na Criação, tivesse feito tudo em função dos homens e fez os homens, em troca do usufruto de tudo, para que lhe prestassem culto e louvor. E o pior, diz o filósofo, é que mesmo que o tempo e a experiência mostrem que as coisas agradáveis e desagradáveis ocorrem, indistintamente, aos devotos e aos ímpios, sem que pareça que Deus esteja atento aos que devotam suas vidas a Ele enquanto outros ignoram essa relação de toma-lá-dá-cá, o preconceito e a superstição não se alteram. Ao contrário, sem respostas para explicar por que inocentes sofrem enquanto pecadores prosperam, o cidadão não acha saída senão afundar-se na ignorância. E responde: “Deus é quem sabe o que faz.”

E o que leva os homens a essa interpretação tão absurda das coisas, tão contraditória? Spinoza não hesita em responder: “O medo é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição. Os homens só se deixam dominar pela superstição enquanto têm medo; todas essas coisas que já alguma vez foram objeto de um fútil culto religioso não são mais do que fantasmas e delírios de um caráter amedrontado e triste…”

Tristes homens cheios de medo, de afetos tristes que os consomem e dos quais não conseguem perceber que podem sair se conhecerem suas causas e moverem seus corpos em busca de encontros alegres, que aumentem sua perfeição, que tornem a vida mais interessante e criativa. A saída para a vida, dirá Spinoza, é a própria vida conhecida pelos homens, em sua razão e nada mais. O conhecimento afasta o medo, não porque ele se dissipa, mas porque esclarece e dá-nos a chance de enfrentá-lo ou de aceitarmos sua inevitabilidade.

Essa escravidão dos afetos tristes diminui o homem em sua potencialidade, encolhe-o e priva-o de sua grande qualidade: a racionalidade para compreender e usufruir do mundo. Diz Spinoza: “A superstição, de racionais transformam os homens em irracionais, os preconceitos tolhem por completo o livre exercício da razão e a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, parecendo expressamente inventados para apagar definitivamente a luz do entendimento!”

O escravo inventa o tirano, que o comanda, dirige e dele tira a força de seu poder. Incapaz de agir por conta própria, de dar direção à sua própria potência, encruado pelo medo do castigo e do não cumprimento dos deveres, o escravo é a outra face do tirano. De ontem e de hoje.

A saída? A saída é perseverar. Ou, como disse Kant, sem saber que seu brado viria ser a mais importante bandeira de luta em um distante país dos trópicos: Ousa saber!

Daniel Medeiros

Doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo

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Artigos de colaboradores e leitores de O Regional.