A opinião do YouTube
Hoje é 31 de janeiro. Anteontem, dia 29, segunda-feira, assisti ao depoimento de um sujeito que foi terraplanista (sim, eles existem) até alguns meses atrás. Tratava-se de uma entrevista em um podcast, na verdade. Logo no início da conversa, ele contou como se tornou terraplanista.
Ele, um homem inteligente e com graduação universitária digna, acessou por acaso um vídeo que lhe apareceu aleatoriamente no YouTube. O título do vídeo era algo como “Porque os terraplanistas estão errados”. E o conteúdo, produzido por um cientista acadêmico, era igualmente contrário à insanidade deste pessoal que realmente acredita que nosso planeta é uma tábua rasa flutuando no espaço sideral.
Ocorre que o sujeito em questão, como todo indivíduo que passou pelos Ensinos Fundamental e Médio e aprendeu alguma coisa nas aulas de Ciências, “acreditava” piamente que a terra é um globo, uma bola, uma esfera. No entanto, ele ficou extremamente chocado que existissem pessoas que dissessem que não, que negassem este fato tão fatual quando o fato de você ter um globo e não um quadrado ocular lhe ajudando na leitura de cada uma destas palavras.
Foi um “eureka!” às avessas. Curioso, ele desatou a pesquisar sobre terraplanismo no próprio YouTube. Acontece que o YouTube, este YouTube que eu e você provavelmente já acessamos ou acessaremos ainda hoje, está programado para sugerir vídeos com o mesmo conteúdo, insistentemente, conforme você pesquisa e assiste. Os algoritmos querem que você passe muito tempo por lá e, por isto mesmo, ao perceberem que determinada temática lhe interessa, eles irão te mostrar mais e mais e mais daquilo. Lobotomia digital?
Pois o sujeito assistiu, naquele mesmo dia, a centenas e centenas e depois, literalmente (não é hipérbole), durante alguns meses, assistiu a milhares e milhares de vídeos sobre terraplanismo produzidos não por cientistas como o doutor do primeiro vídeo. Não! Ele primeiro consumiu “toneladas” de conteúdo conspiracionista de terraplanistas brasileiros (pseudo-biblicistas) e, depois, porque fala inglês, partiu para drogas mais pesadas: o conspiracionismo terraplanista americano, tão mais sofisticado e aparentemente científico quando paranóico e carente de camisa-de-força.
Resultado: em menos de um ano, ele se tornou um terraplanista ideológico, divulgador aficionado. Criou seu próprio canal no YouTube e se tornou um produtor de conteúdo diário monetizado, um influencer sectário. Por obra e graça do Espírito Santo (não consigo atribuir senão a Deus o milagre de deixar de ser imbecil em grau tão avançado, ainda que temporariamente), depois de 2 ou 3 anos ele começou a questionar, nas suas palavras, “algumas incongruências” na argumentação dos seus gurus. No mesmo YouTube, ele pesquisou “provas contra a teoria da terra plana”. Então, assistiu a mais vídeos e, depois de mais algumas semanas, deixou de ser tão besta.
A grande questão é: quantas das nossas opiniões não passam apenas e tão somente de idéias difusas que são acreditadas pura e simplesmente porque, na hora e no lugar certos (eu diria errados) dão de cara com nossa cognição assanhada por idéias exóticas, por significados ocultos e misteriosos? Quantas das nossas opiniões não se sustentam unicamente porque, online ou offline, estamos trancafiados em uma bolha de repetição e alienação? O YouTube foi a “rodinha do hamster” do ex-terraplanista em questão. E qual é o sistema de looping intelectual que nos aprisiona?
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