A menina sem privacidade

Toda sua vida estava exposta nas redes sociais, mesmo as minúcias. O velho diário, escrito com canetas de cores diferentes a cada página, fora enfim aposentado e substituído de forma efetiva pelo meio eletrônico. A diferença – que ela notaria tarde demais – é que sua vida não tinha mais segredos. Nem cadeado.  

Não era a única com tal comportamento. Ao contrário. As amigas também mantinham books fotográficos e relatórios de tarefas diárias à disposição na internet. Bastava ser curioso o bastante para acompanhar, e até vasculhar, a rotina de cada uma delas: trabalho, conquistas, decepções, amores e dores.  

Feita no ano passado, a viagem à Patagônia a menina sem privacidade divulgou em detalhes. Eram fotos e mais fotos, além das tradicionais legendas de não mais do que meia linha. Eu, fulana e beltrana felizes na neve, dizia uma das imagens.  

A suposta futilidade das revelações feitas ao público em sua página virtual não impediu que um sujeito transloucado qualquer copiasse suas fotos. Independente da pose, da situação ou local, ele salvava as imagens em seu microcomputador. E fazia planos.  

Enquanto isso, a menina sem privacidade seguia inocente e contava sua vida aos amigos – e até inimigos, como saberia? –, com beijinhos na frente do espelho e outros selfies em baladas, na piscina e no carro em movimento, apesar do risco óbvio.  

Pelo whatsapp, tempos mais tarde, ela descobriu que aquela brincadeira não era tão engraçada. A mensagem de uma amiga, alardeada pelo som característico do celular, diferia do conteúdo habitual. Era um grito desesperado alertando para um vídeo em que suas fotos apareciam em meio a frases bem ofensivas.  

Tão rápido quanto um clique do mouse, ela entendeu que seus dados e fotos tinham caído nas mãos da pessoa errada. Sem qualquer privacidade, a menina agora exposta na rede do aplicativo de mensagens eletrônicas estava ainda mais visível.  

O problema não era só o fato de ter fotos compartilhadas, mas a relação entre elas e as frases que as acompanhavam. “Difamatórias”, como classificaram as manchetes dos jornais. Algo bem distante, quase oposto, da “fama” pretendida – por ora estragada pela divulgação irresponsável. Constrangimento puro.  

A menina sem privacidade soube, na polícia, que o crime havia atingido bem mais do que uma dezena de mulheres. Agora, elas estrelam filmes nos celulares, numa epidemia incontrolável.  

Descobriu, também, que a superexposição não é culpa dela. A vítima nunca tem culpa. Mas pegou-se a pensar no quanto o ser humano pode ser mau. A-gente-nunca-sabe-quão-mau-podemos-ser. A frase saiu entre os dentes, quase de uma só vez. 

 

Autor

Guilherme Gandini
Editor-chefe de O Regional.