A menina e o Fusca bege

Sonhos podem ser de qualquer tamanho. Até de dimensão incalculável. Há quem diga que quando se sonha alto, o tombo é grande. Talvez seja essa a vantagem de sonhar à altura das possibilidades. Por outro lado, talvez isso limite nossa luta. 

Aquela menina não sabia a resposta para essa questão, tampouco conhecia o provérbio desanimador. Mas seu sonho, que voava alto como os grandes pássaros, era ter um fusca. Não desses modernos, renovados. Queria o tradicional, vintage. 

Apegou-se a um pensamento de um autor desconhecido, visto na internet. “Se seus sonhos estiverem nas nuvens, não se preocupe, pois eles estão no lugar certo; agora, construa os alicerces”. Assim traçou o caminho para atingir seu objetivo. 

Primeiro, viria a estabilidade. Não financeira – quem dera! –, mas a emocional. Precisava ver-se capaz, preparada, ter em mente que “venceria na vida” e que todos os problemas seriam superados. Convencida de seu potencial, nada a seguraria. 

O próximo passo seria conseguir um bom emprego, não o melhor do mundo, mas um que agrade e a defina, dê prazer, reconhecimento e retorno agradável na conta bancária. Ainda que o mercado seja desafiador, conquistará seu lugar ao sol. 

Apaixonada, olhava os fuscas com olhos de coração. Azul, amarelo, vermelho, várias cores e tons. O formato lembrava os bichinhos virtuais de sua infância. Não aquele que sempre morria por falta de cuidados. Mas o que vivia em sua memória. 

Lembrava, também, do fusca bege que sua mãe dirigia e traçava, todos os dias, o caminho até a escola. Lindo, formas arredondadas, faróis lustrosos e rodas brilhantes. Entrar e sair dele não era tormento. Era diversão, num tempo bom. 

Sonhava dirigi-lo, pilotá-lo. Mas suas perninhas, que balançavam soltas no banco traseiro, sequer alcançavam os pedais. As mãos pequeninas também não suportariam o peso do volante. Não teria altura para ver o passado no retrovisor. 

Apesar da inocência, sabia que o fusca bege não tinha vida, mas ainda assim conversou com ele vez ou outra, fez confissões em voz baixa e prometeu que se reencontrariam no futuro. Gravou isso forte na memória para não deixar dissipar. 

Nem o Herbie, fusca branco pérola 1963, dotado de vida própria, com incrível inteligência, carisma e personalidade, que surgiu no cinema anos mais tarde graças aos estúdios Disney, marcou tanto suas lembranças quanto àquele de sua infância. 

Hoje, o fusca de outrora é uma miragem que luta para reconquistar. Uma paquera de anos, da adolescência à idade adulta, que divide espaço com outros sonhos que alimentou por toda a vida. Uns, já alcançou. Outros mais ainda estão por vir. 

 

 

Autor

Guilherme Gandini
Editor-chefe de O Regional.